sábado, 22 de outubro de 2016

UMA OUTRA HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - Pequeno guia prático de conversação com extraterrestres

http://www.diplomatique.org.br/ por Finn Brunton

A China concluiu em julho a construção de um dos maiores radiotelescópios do mundo. O equipamento vai mapear o espaço à procura de sinais extraterrestres. Há séculos a humanidade sonha em estabelecer contato com outros mundos. Das mais loucas às mais sérias, essas tentativas apoiam-se em uma representação comum: esse

A tempestade foi mais forte que o previsto. A tripulação estava mal preparada, o navio afundou. Você conseguiu agarrar-se a um pedaço dos destroços. Depois de passar alguns dias à deriva em alto-mar, você vai parar em uma praia desconhecida. O socorro deve estar sobrevoando a área em busca de sobreviventes. O que você fará para que notem sua presença?
O desafio consiste em utilizar os materiais fornecidos pelo ambiente de modo suficientemente organizado para que, ao primeiro olhar, sua ação seja identificada como distinta da ação da natureza. Você precisa emitir uma mensagem que não deixe dúvidas quanto à sua origem humana e seja compreensível para qualquer pessoa, independentemente da língua e da cultura, pois você não sabe onde está.
A resposta mais óbvia é bem conhecida de campistas, marinheiros e aviadores do mundo todo: padrões e luz. Recolha pedras e as disponha em um esquema geométrico, em forma de triângulo, por exemplo, ou de “SOS”. Encontre uma superfície reflexiva e envie sinais luminosos em determinado ritmo, ou acenda uma fogueira. Se você quiser deixar uma indicação que outras pessoas possam seguir, erga um monte de pedras, componha uma figura com galhos e restos de plantas e pendure-a em uma árvore, ou então desenhe um grande “T” com objetos de várias cores. Mas o que fazer para enviar uma informação mais sofisticada – por exemplo, que você precisa urgentemente de insulina, ou que não há lugar adequado para aterrissagem na vizinhança, ou que você foi para o noroeste tentar encontrar comida?
Poderíamos tornar o problema mais divertido, acrescentando uma dificuldade extra. Suponha que você não tem a menor ideia de como as equipes de resgate irão procurá-lo: de avião, a pé, de barco ou por imagens de satélite. Na verdade, você nem sabe se alguém virá. Meses ou anos – talvez até décadas ou séculos – poderiam se passar até que os rastros de sua passagem fossem descobertos. Não apenas você não sabe a língua falada por seus eventuais salvadores, como também nada garante que eles sejam humanos. Você não sabe nada sobre a anatomia, a tecnologia, não sabe o que eles querem nem como realizam as buscas. Considerando todo esse quadro, como mandar um sinal? A imensidão oceânica que circunda sua pequena ilha parece medir anos-luz.
Essa é a situação que vivemos nós, humanos, quando olhamos para o céu.
Desde que compreendemos a dimensão e a estrutura de nosso sistema solar e percebemos que outros mundos e estrelas são semelhantes ao nosso, começamos a especular sobre seus possíveis habitantes – e as diversas maneiras de nos comunicarmos com eles. Deixamos o centro radiante da mecânica celeste para assumirmos a humilde condição daqueles que Herman Melville chamou de Isolatoes, ilhéus condenados à inconcebível solidão de uma Picárnia sideral.1 Vimos Marte e suas luas; alguns pensaram ver ali canais e até cidades: era apenas um pálido reflexo da praia longínqua de outra ilha.
Que selvas e arquipélagos, que Brasis e Congos estariam escondidos sob as nuvens de Vênus? As espessas nuvens de cinzas que cobrem o planeta são o resultado dos “fogos de artifício soltos pelos venusianos”, escreveu o astrônomo da Baviera Franz von Paula Gruithuisen na década de 1830.2 Os 47 anos decorridos entre duas observações correspondiam, segundo o astrônomo, ao “reinado de um monarca absoluto”. Tais festividades certamente indicavam que “um Napoleão ou um Alexandre tomava o poder supremo em Vênus”. Gruithuisen ofereceu deliciosas descrições das cidades esqueléticas que ele afirmava ter observado em uma cratera lunar. O historiador Michael Crowe, em sua soberba história dos debates sobre a vida extraterrestre, descreve o cientista bávaro como um ser dotado de incrível energia, notável visão, instrumentos de alta qualidade para a época e rara predisposição para o absurdo.3 Talvez os marcianos do deserto ou os venusianos amantes de jogos pirotécnicos nos vejam como os vemos. Mas de que modo iniciar a conversa?
As primeiras respostas a essa pergunta inspiraram-se alegremente na metáfora do náufrago. O grande matemático Carl Friedrich Gauss (1877-1855) defendia a utilização de um gigantesco helióstato – um sistema de espelhos que ele inventou para refletir a luz solar em longas distâncias, a fim de marcar a posição de um navio – para cumprimentar nossos vizinhos extraterrestres: uma centena de espelhos de 1,5 metro quadrado, cada um ajustado de modo a emitir um reflexo através do espaço. Um objeto de tal esplendor poderia facilmente ser abrigado pelo fabuloso observatório astronômico de Jantar Mantar, construído no século XVIII em Jaipur, na Índia. O desejo lancinante de quebrar nossa solidão produziu uma grande quantidade de ideias malucas, muitas vezes erroneamente atribuída a Gauss – e ao astrônomo Joseph von Littrow (1781-1840) –, como as seguintes: cavar enormes canais geométricos no Deserto do Saara, enchê-los de querosene e incendiá-los, obviamente à noite e sob o olhar de Marte; ou cultivar espaços agrícolas na Sibéria formando o quadrado da hipotenusa e os quadrados opostos, em uma escala grande o suficiente para ser visível por um telescópio no planeta de nossos vizinhos mais próximos.
A invenção da luz elétrica, no fim do século XIX, deu novo impulso à imaginação dos astrônomos. Enquanto Camille Flammarion pedia a instalação no Saara de fileiras de luminárias gigantes que iluminariam o céu quando Marte estivesse visível, seu colega A. Mercier propunha erguer uma enorme lâmpada elétrica equipada com espelhos refletores em pleno coração de Paris – no Campo de Marte, localização de fato muito indicada... Mas, diante das objeções que a presença do farol mais brilhante do mundo poderia suscitar entre os parisienses, já bastante incomodados pela Torre Eiffel, Mercier desistiu da ideia e sugeriu, então, instalar dois espelhos em uma montanha, dispondo-os de tal modo que o Sol poente se refletisse na vertente sombreada, a fim de que o reflexo enviado a Marte tivesse um contraste ótimo.
O físico norte-americano Robert Wood (1868-1955), autor de algumas das principais descobertas sobre os raios ultravioleta e o ultrassom, esboçou um sistema ainda mais engenhoso: alinhar em pleno deserto quilômetros de painéis de tecido preto capazes de abrir e fechar juntos, em um balé de pixels que enviaria “uma série de piscadelas” para os observadores marcianos. Já o grande cientista Konstantin Tsiolkovsky (1857-1935), pioneiro da astronáutica russa (e partidário de um futuro extraterrestre para a espécie humana), defendia plantações de espelhos em uma escala ainda mais colossal. Se a “martemania” galopante do início do século XX tivesse encontrado capital suficiente, muitos desertos hoje estariam repletos de espelhos quebrados, empoeirados e abandonados, refletindo um céu vazio – uma espécie de monumento ao nada.
Todas essas propostas caracterizam-se simultaneamente por sua criatividade no plano físico e sua preguiça no plano intelectual. Elas evocam propostas de esculturas minimalistas elevadas a dimensões astronômicas, ou land art, uma variante da arte contemporânea que utiliza o suporte e os materiais da natureza – um pouco como se o artista Robert Smithson contasse com os recursos da Bechtel ou da Bouygues a fim de materializar uma forma ou um flash para o público de outro mundo.
Intelectualmente, em compensação, a fragilidade salta aos olhos: elas postulam um universo habitado por pessoas que se parecem mais ou menos conosco e, informadas de nossa existência, por meio de nossos próprios esforços, juntar-se-iam a nós para uma amigável troca de pontos de vista. Nossa conversa, previu Gauss, “teria início graças aos meios de contemplação matemática e reflexão que temos em comum”. Todos esses quilômetros de espelhos nas montanhas e desertos estariam endereçados, portanto, a espíritos primos, mais velhos e sábios, supondo-se serem os extraterrestes “muito superiores” a nós, como disse Flammarion: uma espécie de Kants melhorados, meditando sobre o sentido da vida marciana aos pés do Monte Olimpo. Mesmo que esse quadro fosse correto, como compartilhar coisas um pouco mais sofisticadas que um gesto fático – um “estou aqui”, representado por montículos de pedras, fogueiras ou um triângulo retângulo?
Charles Cros hoje em dia quase não é mais conhecido – para quem ainda o conhece – como um marginal da poesia francesa do século XIX. Mas ele foi um grande inventor, a quem devemos destacadamente técnicas fotográficas em tricromia e uma das primeiras versões do fonógrafo, lindamente batizado de paleófono (“voz do passado”), um protótipo muito similar ao que Thomas Edison concebia ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico. Cros fazia parte de um círculo de artistas e escritores que praticavam uma atitude “fumista”, ou seja, combinavam o gosto pelo escândalo com um humor lacônico e seco. Entre seus trabalhos de provocação poética e experimentação tecnológica, ele pediu ao governo francês financiamento para um programa de pesquisa sobre a comunicação com os marcianos – assunto ao qual dedicou uma reflexão rigorosa.

Formalização da vida humana
Em seu Estudo sobre os meios de comunicação com os planetas, publicado em 1869, Cros retomou o conceito em voga na época – o enorme espelho que envia sinais luminosos a uma inteligência extraterrestre – para levá-lo ainda mais longe, indagando sobre a maneira de transmitir informações a nossos interlocutores de outro mundo, depois que a conexão estivesse estabelecida. Ele parte da ideia de que sequências ritmadas de flashes luminosos poderiam servir como código para dígitos, que por sua vez poderiam servir como código para imagens. Para isso, basta transformar uma sucessão de dígitos em pixels binários (por exemplo, espaços brancos e pretos) e ordenar sua sucessão em uma grade. As linhas de pontos brancos e pretos acabam formando uma imagem. Mas, em vez de disparar laboriosamente um por um cada um dos pontos, Cros teve a ideia de resumir a mensagem. Se 1 significa preto e 0, branco, a sequência “6-1 2-0 3-1 1-0” dá:

Assim, é possível representar doze pontos com uma sequência de apenas oito caracteres. Para o leitor iniciado em linguagem de computador, a descoberta de Cros remete irresistivelmente a um método de compressão e transmissão de arquivos utilizado principalmente pelos aparelhos de fax, as primeiras imagens digitais em bitmap e algumas das primeiras tecnologias de TV.
Cros precisava de métodos de codificação para transformar imagens – e, potencialmente, outros conteúdos – em sinais transmissíveis por seu sistema. Ele os encontrou dentro das fábricas: “Procedimentos de notação capazes de traduzir padrões em séries de dígitos são utilizados em muitas indústrias, como as de tecelagem e de bordado”. Isso interessa aos ouvidos de um historiador da computação: de que máquina Cros está falando? Dos métodos de tecelagem Jacquard. “Há [nesses ofícios] uma ciência profunda, que, como ocorre com frequência, foi posta em prática antes mesmo de ser teorizada.”4 Na verdade, os métodos de tecelagem com cartões perfurados, efetivados em 1801 por Joseph-Marie Jacquard, serviram de inspiração para o computador mecânico imaginado em 1834 pelo matemático britânico Charles Babbage. Encontramos esses cartões perfurados nos fundamentos da máquina de estatísticas do engenheiro norte-americano Herman Hollerith (1860-1929), a qual, por meio do que se tornaria a IBM, gerou a computação moderna. “Emergirá daí um ramo novo e importante da matemática”, profetizou Cros, “e por fim uma nova classificação dessas ciências primordiais”, a ciência da informação e do armazenamento de dados. Assim, Cros delineou o projeto de transformar a Terra em um cartão gráfico gigante e desenvolver algoritmos capazes de codificar qualquer imagem, para que ela seja encaminhada e visível em qualquer local. Com seus problemas de abstração, codificação e compressão, o projeto meio maluco, que consistia em inventar uma comunicação não humana para interagir com os marcianos, revelou-se fundamentalmente similar ao que consiste em desenvolver uma mídia de computador – ou seja, “o que hoje chamamos de programação”, como escrevia Lancelot Hogben em 1952.
Hogben foi um zoólogo inglês especializado em estatísticas médicas. Ele vivia em um cosmos muito mais solitário que nossos apaixonados por Marte e sabia que era preciso paciência para estabelecer contato com uma vida extraterrestre e que isso provavelmente passaria por ondas de rádio: nada de lâmpadas elétricas ou traçados euclidianos em campos de trigo na Sibéria. Sua proposta – cheia de entusiasmo, mas extremamente detalhada – da “astroglossa” não visava tanto criar uma língua em si, mas analisar todas as implicações de um projeto de comunicação com um interlocutor não humano e desconhecido.5 Em seu trabalho profissional, Hogben debruçava-se sobre os sinais hormonais emitidos por uma espécie de rã e por camaleões africanos. Antes de se preocupar com o sentido ou a linguagem, ele se interessava pela maneira mais rudimentar de sinalizar a existência: “a técnica de designar alguma coisa” por meio do tempo, de números, intervalos e estrelas.
Os resultados são desconcertantes, à primeira vista:

1 .. Fa .. 1.1 .. Fa .. 1.1.1 .. Fb .. 1.1.1.1.1.1

Tradução: um mais dois mais três são seis. Os pontos são as unidades de tempo que separam os pulsos, enquanto os “F” referem-se a “flash”, ou seja, às sequências de pulsos dotadas de propriedades distintas cuja posição sugere operações, como a adição (Fa), a subtração e a identificação (Fb). Utilizando pulsos, tempos e operações, destaca Hogben, podemos fazer perguntas, ou pelo menos emitir um sinal interrogativo. Já não se trata de produzir um “monólogo de simples afirmações”, mas de criar as condições de uma troca. Mais adiante, em seu estudo, ele se diverte em analisar como seria possível significar pronomes (“seu” ou “nosso”, “ele” ou “eles”, “eu” ou “mim”), marcar uma aprovação, uma recusa, dúvidas, condições e afirmações, sugerir causas e consequências, e até realizar um jogo de xadrez celeste – tudo por meio de um sistema de pulsos binários e flashes referindo-se aos tempos e objetos estelares.
O objetivo final é estabelecer uma “comunicação recíproca” com o desconhecido, do mesmo modo que “nossos ancestrais neolíticos puderam se comunicar conosco” por meio de relíquias codificadas, calendários, ossos entalhados e montículos de pedras, ou do mesmo modo que “transmitimos ordens às novas máquinas eletrônicas de computador”. A ideia de estabelecer um sistema compartilhado de símbolos binários e uma lógica de operações baseada na ordem, no tempo e na interação passou pelo trabalho do matemático Alan Turing (1912-1954) e dos engenheiros Tom Kilburn e Fred Williams para fabricar, em Manchester e Londres, as primeiras calculadoras eletrônicas – contemporâneas aos escritos de Hogben e ao nascimento do estruturalismo e da semiótica na Grã-Bretanha.
Com poucas exceções, como o “Golden Record” enviado a bordo da sonda espacial Voyager em 1977 (um disco gravado de ouro e alumínio anodizado, preso a uma sonda, à deriva em algum lugar do espaço interestelar), os princípios esboçados por Hogben servem ainda hoje para as tentativas de comunicação com extraterrestres: pulsos, cadeias de energia binárias que codificam diferentes tipos de mensagem ou esquemas de representação, pesquisas nas áreas de informática e telecomunicações para minimizar erros de transmissão e enviar um sinal claro. Mas para que conteúdo? Qual poderia ser a substância de uma comunicação com interlocutores desconhecidos e incognoscíveis? Inicialmente, a ideia é transmitir um conjunto mínimo de fatos: um sistema numérico, coordenadas estelares, algumas bases de química e uma silhueta humana. A mensagem de Arecibo, de Frank Drake, enviada pelo radiotelescópio de mesmo nome em Porto Rico, era composta por um feixe de 1.679 bits de pulsos on/off. O número 1.679 é o produto de dois números primos, 23 e 73, e, se os sinais on/off forem colocados em uma grade de 23 colunas e 73 linhas, eles formam uma imagem. Lendo-a de cima para baixo, essa mensagem fornece o peso nuclear dos principais elementos de nossa biologia e a composição química de nosso DNA, dados sobre a população humana e seus atributos (o próprio comprimento de onda da mensagem já fornece indicações), a disposição de nosso sistema solar e a localização da antena. A maioria das mensagens dirigidas a outro mundo é parecida com essa, humilde e prioritariamente preocupadas com a estrutura de sua própria decodificação, único dique a nos separar da esmagadora extensão de nossa ignorância.
O envio de sinais mínimos a estrelas distantes e silenciosas é por si só um grande desafio. Mas há projetos ambiciosos para expandir o potencial de uma comunicação nesse formato. Entre os mais importantes deles está um dos mais rigorosos e excêntricos projetos do século XX. Criado pelo matemático Hans Freudenthal, a língua Lincos (língua cósmica) propõe “traduzir a totalidade de nosso conhecimento” em um material comunicável a qualquer forma de vida inteligente. Sua obra merece um lugar de destaque na prateleira dos documentos mais bizarros e visionários da história humana. O grande cientista especializado em inteligência artificial Marvin Minsky (conselheiro de Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick na produção de 2001, uma odisseia no espaço) assim a resumiu: “Ele começa com matemática elementar e mostra, em seguida, como todos os tipos de outras ideias, inclusive ideias sociais, poderiam basear-se nos mesmos fundamentos”.
Trata-se de uma língua que começa com bips de pulsos de rádio destinados a transmitir dígitos e acaba na mecânica relativista. Assim como Hogben, Freudenthal persegue um objetivo muito ambicioso. Ele apresenta um grupo de atores humanos atuando em esquetes de caráter lógico. Essas conversas e eventos entre Ha e Hb – inteiramente redigidos no sistema de notação de Freudenthal – dão origem a histórias sobre a natureza do mundo e, mais precisamente, sobre a natureza da experiência humana em suas formas mais austeras. Ha joga uma bola de modo que Hb não consiga pegar. Hb sabe alguma coisa que se recusa a dizer, o que significa que Ha não sabe do que se trata, mas pode tentar adivinhar. Ha e Hb sabem o que aconteceu no passado, mas ignoram o que se dará no futuro, então fazem apostas sobre o que poderia acontecer. Ha não viu alguma coisa, por isso pergunta a Hb se ele sabe mais sobre isso. Eles vivem juntos em um mundo onde há muitos outros seres, mas com os quais não conseguem se comunicar da mesma forma, embora esses seres também possam ver, ouvir, mover-se, conhecer o passado e pegar uma bola. Ha e Hb podem morrer, assim como os outros seres com os quais partilham o mundo. Ha e Hb podem querer que as coisas sejam diferentes do que são. Quando um deles morre, eles não podem mais se falar.
Não é o caso, em absoluto, de menosprezar a façanha de Freudenthal – uma tentativa de formalização total da vida humana em um feixe de sinais eletromagnéticos –, mas de questionar sua capacidade de alcançar seu objetivo: a vida extraterrestre potencialmente mais próxima de nosso planeta está tão longe que levaria décadas entre o envio de uma mensagem e o recebimento de uma resposta – um início de diálogo levaria séculos. Algumas das unidades dialógicas de Freudenthal contêm centenas de etapas, com vários pontos que pedem confirmação: um simples jogo de perguntas e respostas se estenderia por milênios. Na verdade, o sistema que ele desenvolveu é muito mais próximo de nós – e bem mais apropriado –, como uma linguagem concebida para explicar as características humanas não a extraterrestres, mas a máquinas.
Suas percepções envolventes servem menos para serem transmitidas em direção a Alpha Centauri que para ensinar o que significa ser uma pessoa a um receptáculo desprovido de tudo, exceto de uma memória capaz de registrar uma gama limitada de símbolos eletromagnéticos. Não admira que Marvin Minsky tenha desenvolvido a primeira rede de simulador neural: seu trabalho falava com as estrelas, mas aterrissou em um laboratório de inteligência artificial.
Na verdade, já estabelecemos uma relação com um planeta estrangeiro: nós o construímos e o conservamos por nós mesmos, ensinando sua população como ter um senso espacial do mundo, guardar segredos, reconhecer rostos, ouvir, comprimir e filtrar vozes, conversar – tudo isso por pulsos binários, operações lógicas e esquemas de codificação e decodificação. O comércio informacional de nosso mundo, a Terra, inscreve-se na densa rede de canais marcianos que cavamos ao longo dos últimos sessenta anos (cabos submarinos, torres de servidores, de telefonia, computadores portáteis, de mesa, sapatos e roupas conectados), por meios que incluem os problemas e soluções de Cros e Gauss, de Hogben e Freudenthal.
O interlocutor não humano dessas mensagens para extraterrestres é hoje a mais comum das criaturas de nossa pequena ilha: somos nós. Nós que reagimos a alertas automáticos, que discutimos com sistemas de reconhecimento de voz, que deciframos captcha6 para nos conectar ao Facebook e consultar nossa página organizada por algoritmos – enquanto ao nosso redor se estende o oceano infinito e silencioso.



Finn Brunton

é professor de Mídia, Cultura e Comunicação da New York University. Autor de Spam. A shadow history of the Internet [Spam. Uma história sombria da internet],MIT Press, Cambridge (Estados Unidos), 2013.

Ilustração: Daniel Kondo




1 Picárnia é uma ilha do Pacífico onde se instalaram em 1789 os amotinados do navio Bounty.
2 Citado por Michael Crowe, The Extraterrestrial Life Debate, 1750-1900 [O debate sobre a vida extraterrestre, 1750-1900], Cambridge University Press, 1986.
3 Ibidem.
4 Charles Cros, “Étude sur les moyens de communication avec les planètes” [Estudo sobre os meios de comunicação com os planetas], Œuvres complètes, Gallimard, Paris, 1970.
5 Lancelot Hogben, “Astraglossa, or first steps in celestial syntax” [Astroglossa, ou os primeiros passos na sintaxe celestial], Science in Authority, Norton, Nova York, 1963.
6 Captcha são caixas com caracteres distorcidos que aparecem, por exemplo, quando se usam certos serviços on-line. Ao decifrar sinais ilegíveis para um computador, o usuário prova não ser uma máquina.

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