quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Direito à cidade, luta proibida?

16142770_802365123254968_7457064654173346120_n
Guilherme Boulos, coordenador do MTST detido hoje pela polícia paulista, explica por que o capitalismo contemporâneo não tolera metrópoles sem cercas

Por Guilherme Boulos
http://outraspalavras.net/

Trecho do livro Por que ocupamos? (Autonomia Literária, editora parceira de Outras Palavras no Outros Quinhentos). Foto da Mídia Ninja no despejo de 700 famílias da ocupação Colonial

O Brasil tem tantas mazelas sociais que às vezes não conseguimos ter a dimensão da gravidade de cada uma delas. A falta de moradia é um dos problemas mais sérios. Estamos entre os países com maior déficit habitacional do mundo, ao lado de Índia e África do Sul.
“Déficit habitacional” é o nome que se dá para a quantidade de casas que faltam para atender a todos aqueles que precisam de um teto. Existem dois modos de definir este déficit: o quantitativo (número de famílias que não tem casa) e o qualitativo (número de famílias que moram em situação extremamente inadequada). Estes dois dados, juntos, formam o panorama do problema habitacional brasileiro.

O último estudo feito pela Fundação João Pinheiro, publicado em novembro de 2013, que é utilizado oficialmente pelo governo federal, mostra que o déficit habitacional quantitativo no Brasil é de 6.940.691 famílias. Isso significa que cerca de 22 milhões de brasileiros e brasileiras não têm casa. Os sem-teto são, portanto, mais de 10% da população do país. Como vive toda essa gente?

É preciso, primeiramente, deixar de lado a visão equivocada de que sem-teto são somente aqueles que moram na rua, em situação de extrema miséria e mendicância. Esse grupo é aquele que chegou ao limite da degradação causada pela falta de moradia, pelo desemprego e outros males do sistema capitalista. A maioria dos sem-teto, no entanto, não está em situação de rua e trabalha, ainda que muitas vezes na informalidade e sem direitos assegurados.

O mesmo estudo da Fundação João Pinheiro mostra que, destas 22 milhões de pessoas, cerca de 43% vivem em situação de coabitação familiar, isto é, moram de favor na casa de parentes, onde ocupam algum pequeno cômodo. Outros 31% gastam dinheiro demais com aluguel, ou seja, deixam de consumir o básico para sobrevivência pelo peso que o aluguel representa na renda familiar. Há ainda uma parte que vive em casas absolutamente precárias e outra, em cortiços. Estas são as condições de vida em que se encontram os sem-teto no Brasil.

Como dissemos, o problema se completa com o chamado déficit habitacional qualitativo, que se refere à falta de condições básicas para uma vida digna. Este número é maior que o anterior: são 15.597.624 famílias nesta situação, isto é, cerca de 48 milhões de pessoas.

Que condições são essas?

Segundo dados oficiais, o maior destes problemas, que afeta mais de 13 milhões de famílias, é a falta de infraestrutura e serviços básicos a uma moradia decente: luz elétrica, água encanada, esgoto e coleta de lixo. Para que se tenha uma ideia da gravidade do problema, mais da metade (63%) das famílias da região Norte do país vive na carência permanente de pelo menos um destes serviços básicos. Mesmo nas partes mais ricas do país, o problema é alarmante. A Região Metropolitana do Rio de Janeiro tem mais de 700.000 famílias nesta condição.

Outro problema grave relacionado à inadequação de moradias é o adensamento excessivo de pessoas numa única residência. Cerca de 1,6 milhão de casas abrigam mais de três pessoas por cômodo, em geral cômodos pequenos. E uma de cada quatro dessas casas superpovoadas encontra-se no estado mais rico do Brasil: São Paulo. A este problema ainda se soma, no país, mais de 1 milhão de moradias que simplesmente não têm banheiro.

Quem são os brasileiros que fazem parte destes números assustadores?

Será que não há coleta de lixo e água encanada nos condomínios de luxo da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro? Será que falta banheiro em alguma mansão do bairro do Morumbi, em São Paulo? É claro que não.

Os brasileiros que sofrem com o problema de moradia – seja pela falta ou pela inadequação das casas, seja pela ausência de serviços básicos – são os trabalhadores mais pobres, em especial aqueles que vivem nas periferias urbanas. Os dados mostram: 67% das famílias que não têm casa no Brasil vivem com renda menor que 3 salários mínimos por mês.

No caso dos serviços básicos, a desigualdade é incrível. O Estado deveria garantir a todos as mesmas condições, independentemente de onde moram ou quanto ganham. Não é isso que eles dizem? Mas a realidade é bem diferente… Veja a tabela a baixo.


No Nordeste, 82% das famílias que ganham menos que dois salários mínimos sofrem com a carência de serviços, mas, no caso das que ganham mais que dez salários, o número desce para 2%. Quem acha que isso só ocorre no Nordeste está enganado: na Região Metropolitana de São Paulo as coisas não são muito diferentes: 67% das famílias com menos de dois salários sofrem com essa situação; no caso das famílias com mais de dez salários, o número é 1,7%.1

Vemos com isso que o problema da moradia reflete uma desigualdade social profunda. Quem sofre com o déficit habitacional tem nome e endereço: são os trabalhadores mais pobres, que moram nas periferias das cidades. Essa lógica da desigualdade se mostra nua e crua quando vemos o número de imóveis vazios no país.

Muito para poucos, pouco para muitos

Ao contrário do que parece, não faltam casas no Brasil. Há quase tantas casas quanto famílias para morar nelas. Mas, como vimos, existem milhões de pessoas sem-teto. Estranho isso, não é?

Vamos relembrar: são 6.940.691 famílias que não tem casa no país. Problema muito grave, principalmente quando a mesma pesquisa nos mostra que existem 6.052.000 imóveis vazios, sendo que 85% deles teriam condições de ser imediatamente ocupados. Ou seja, há praticamente tantas casas sem gente do que gente sem casa. Em tese, precisariam ser construídos poucos imóveis para resolver o problema habitacional brasileiro.

Apenas em tese, porque a maior parte dessas casas vazias – sem falar nos terrenos ociosos, onde não há edificação – está nas mãos de um pequeno grupo de grandes capitalistas, que ganham muito deixando as coisas do jeito que estão. No capítulo seguinte, veremos como eles atuam e a força política que têm.

É importante lembrar que esses milhões de imóveis vazios não incluem a chácara ou o apartamento da praia, que algumas famílias de renda média conseguiram adquirir por meio de seu trabalho. São apenas os imóveis permanentemente desocupados, em sua grande maioria usados para especulação imobiliária.

A contradição é gritante. E, se pensarmos bem, vemos que ela não ocorre só em relação ao problema da moradia. O Brasil é um dos maiores produtores de alimento do mundo e, no entanto, milhões passam fome. Poderíamos pensar muitos outros exemplos de uma lógica em que o direito dos ricos se impõe sobre o direito dos trabalhadores. Em nome do direito à propriedade de alguns poucos, se nega o direito à moradia para milhões.

Moradia: direito ou mercadoria?

Todo cidadão tem direito à moradia digna. Pelo menos é o que diz o artigo 6° da Constituição Federal do Brasil.

Direito significa algo que deveria ser garantido de maneira igualitária a todos, sem distinção. A responsabilidade de garantir direitos é do Estado, que, para isso, cobra impostos e realiza (ou deveria realizar) investimentos.

Se a moradia digna fosse tratada de fato como um direito, ela deveria ser garantida a todos pelo Estado, sem distinção de renda ou região. Isso significaria garantir moradia “gratuita” – ou melhor, subsidiada – aos que mais precisam.

Vemos, porém, que não é bem isso o que ocorre. A falta de moradia e a precariedade dos serviços básicos afeta apenas os trabalhadores, em especial os mais pobres. A distinção entre direito para o rico e direito para o pobre é evidente.

Entender a moradia como direito significa pensá-la a partir da necessidade e do uso. Ao contrário, a lógica capitalista dominante trata a moradia – e todos os direitos sociais – a partir do valor medido em dinheiro, o valor de troca. Para o capital, pouco importa se há gente precisando de moradia: importa se há quem possa pagar por ela e trazer lucro às construtoras e donos de terra.

Tudo é transformado em mercadoria, independente das necessidades sociais. Se não fosse assim, seria inexplicável haver tantas casas vazias ao lado de tanta gente sem-teto. A moradia, além disso, é uma “mercadoria” muito cara para a maioria dos trabalhadores brasileiros. Durante muito tempo, foi quase um item de luxo.

O mercado habitacional brasileiro caracterizou-se historicamente por ser muito elitizado. Voltou-se para atender a chamada classe média e os ricos das grandes cidades. Esses segmentos sociais sempre encontraram créditos bancários e empreendimentos mais ou menos compatíveis com seus bolsos. Aos trabalhadores, restava o eterno aluguel e, principalmente, os loteamentos e ocupações nas periferias urbanas.

Esta mercantilização do direito realiza os lucros de importantes grupos econômicos. No caso da moradia, se o Estado cumprisse seu dever de garanti-la a todos, os especuladores de terra e as grandes construtoras perderiam dinheiro. O mesmo se passa com outros direitos. Se o Estado garantisse educação pública de qualidade a todos, as escolas e faculdades privadas deixariam de existir. A mesma coisa ocorreria aos planos de saúde se o serviço público de saúde fosse como deveria ser.

Enfim, transformar o direito em mercadoria prejudica a maioria, mas favorece a classe mais rica. E o Estado, que deveria garantir os direitos, o que faz em relação a isso?

BNH: primeiro programa habitacional do Brasil

Os programas habitacionais do Estado brasileiro não representaram jamais um contraponto à lógica de eliminação da moradia como direito. Ao contrário: aprofundaram o caráter excludente e mercantil desta lógica.

Na realidade, o Estado brasileiro desenvolveu apenas dois programas habitacionais relevantes ao longo de toda sua história: o Banco Nacional de Habitação (BNH), durante a ditadura militar; e o tão falado Minha Casa Minha Vida, a partir do governo Lula. Vejamos brevemente o significado destes programas.

O BNH pretendia ser, no início, uma forma de dar legitimidade ao governo dos militares depois do golpe de 1964. A proposta, expressa inclusive em documentos, seria transformar o trabalhador em proprietário (de um imóvel) e, assim, ganhar a simpatia dos mais pobres ao regime repressivo e antipopular dos generais.

Mas nem isso fez. As iniciativas do BNH voltadas aos mais pobres – seja no caso dos projetos de desfavelização no Rio de Janeiro ou no caso das Cohabs – resultaram em fracassos estrondosos.

Isso ocorreu por conta da lógica bancária e empresarial do BNH. Não havia praticamente nada de subsídio, isto é, o valor completo do imóvel tinha que ser pago pelo mutuário do programa. Além disso, as prestações eram elevadas e seguiam as normas do crédito bancário privado. O que isso quer dizer?

Quer dizer que o BNH não fez nada diferente de um banco privado ou de uma grande empreiteira. Seu objetivo sempre foi o lucro com a produção e financiamento de moradias. A moradia, tratada pelo próprio Estado como mercadoria, permaneceu sendo privilégio dos que podiam pagar alto por ela.

Das cerca de cinco milhões de casas financiadas pelo BNH, apenas 25% (uma em cada quatro) foram destinadas a famílias com renda menor que cinco salários mínimos. E isto correspondeu a somente 12% do total de recursos aplicados pelo banco. É muito pouco.

Ou seja, o BNH financiou casas para a classe média e não para os trabalhadores mais pobres, que, como vimos, representam 90% do déficit habitacional. Seu maior objetivo sempre foi dar lucro, nunca garantir o direito à moradia.

Depois da falência do BNH, em 1986, o país ficou mais de vinte anos sem ter qualquer política habitacional importante. Até que, no governo do presidente-operário, veio o Minha Casa Minha Vida, com a promessa de resolver todos os problemas.

Será? Vamos ver passo a passo como as coisas aconteceram.

Minha Casa Minha Vida: quem ganha com isso?

O programa foi lançado em fevereiro de 2009, alguns meses depois da explosão da maior crise econômica deste século, em 2008, nos Estados Unidos. O estouro desta crise teve como pavio exatamente o mercado imobiliário norte-americano. Foram vendidas muitas casas nos Estados Unidos a crédito, com valores excessivamente altos, por conta da especulação imobiliária. Com o valor dos terrenos lá em cima, muitas empresas e bancos viram aí uma oportunidade de engordar mais ainda seus lucros: emprestavam dinheiro a quem queria comprar uma casa, tomando o próprio imóvel como garantia de pagamento. Como o valor das casas crescia cada vez mais, o negócio era atraente aos capitalistas.

O problema é que muitos destes compradores, em geral trabalhadores norte-americanos, não tinham como pagar as prestações. Por isso, algumas empresas e bancos – que já tinham ganhado muitos milhões de dólares – decretaram falência. As casas deixaram de ter compradores. Muitas famílias foram despejadas, já que a casa era a garantia do empréstimo. E a crise se alastrou.

É claro que o buraco desta crise é muito mais embaixo. Se formos mais a fundo, veremos que ela está longe de ter acabado. Ainda ouviremos falar muito de crise nos próximos anos. Mas o que nos interessa aqui é que, depois de 2008, os investimentos na construção civil caíram brutalmente no mundo todo. Os bancos deixaram de oferecer crédito e, sem crédito, nem as empresas capitalistas produzem, nem os trabalhadores compram.

O que isso tem a ver com o Minha Casa Minha Vida? Ora, por estas razões, 2009 caminhava para ser um ano com poucos lucros – provavelmente com prejuízos e até falências – para grandes empreiteiras do Brasil. E neste ponto chegamos ao grande fator que motivou a proposta do Minha Casa Minha Vida pelo governo federal.

O programa foi desenvolvido com o objetivo central de salvar o capital imobiliário, injetando, em sua primeira fase, R$ 34 bilhões em recursos públicos na iniciativa privada. Neste ponto deu certo: as empresas do ramo puxaram a alta da Bolsa de Valores de São Paulo em 2009 e atraíram interesses no mundo todo. Hoje, 75% das ações das maiores construtoras do país estão nas mãos de investidores estrangeiros.

Assim, as empreiteiras receberam o presente de R$ 34 bilhões para aliviar sua crise. O sistema é simples: o governo dá o dinheiro, a empreiteira constrói e o governo apresenta os compradores. Ou seja, não há nenhum risco para o capitalista nem necessidade de gastos com a venda – corretores, propaganda etc. E tudo com dinheiro público.

Mas alguns companheiros poderiam questionar: M esmo que favoreça as empreiteiras, está construindo moradia para quem precisa e resolvendo o déficit habitacional, não é? Isso foi o que afirmou o então presidente Lula, ao falar que o Minha Casa Minha Vida representava uma “reconciliação entre o capital e o trabalho” – ou seja, atenderia aos interesses de todos, sem conflitos.

O problema é que, como dizia o jornalista Joelmir Beting, na prática a teoria é outra. Na verdade, ao definir como meta central atender os interesses do capital, o programa manteve a mesma lógica que vimos no caso do BNH. Cerca 75% dos recursos e 60% das habitações do programa foram destinados a famílias com renda maior do que três salários mínimos, exatamente porque – em se tratando de imóveis mais caros – as empreiteiras ganham mais.

Apenas 40% das moradias da primeira fase do programa são para famílias com renda menor do que três salários mínimos, o que representa menos de 10% do déficit habitacional nesta faixa de renda. É um filão que interessa menos às construtoras.

Além disso, ao deixar nas mãos das empresas todo o processo de projeto e construção, surgiram as piores aberrações. Os conjuntos habitacionais são construídos em regiões muito periféricas, com pouca infraestrutura, já que os terrenos aí custam menos para as empreiteiras. A qualidade e tamanho das moradias são também os piores possíveis. Para as famílias com menos de três salários, o parâmetro do tamanho das casas é de 39 metros quadrados. São as conhecidas “caixas de fósforo” populares.

Por outro lado, é fato que o programa representou um avanço importante em relação à quantidade de subsídio para a aquisição da casa, especialmente para famílias com menos de três salários: um volume de subsídios expressivo e inédito. Mas isso, como vimos, se combina com localização ruim, qualidade precária e quantidade muito insuficiente de moradias para os mais pobres.

O ex-presidente Lula não conseguiu conciliar o capital com o trabalho. Assim como nem o mais hábil desenhista pode fazer um círculo quadrado. Mas conseguiu outra conciliação, a que realmente pretendia com o programa: conciliou a garantia de impressionantes doações de campanha das empreiteiras para sua sucessora nas eleições de 2010, com milhões de votos de trabalhadores, que acreditaram na propaganda de que seria sua vez de morar dignamente.



1 Os dados deste parágrafo referem-se ao estudo realizado pela Fundação João Pinheiro em 2009, já que o estudo de 2010 não incluiu a tabela de inadequação de moradia por faixa de renda.

Nenhum comentário:

Postar um comentário