sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Na cama com o patriarcado

                             Foto: Reprodução
Na cama com o patriarcado

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Já transei com mais de 206 milhões de pessoas!

Da próxima vez que me perguntarem com quantas pessoas já fui para a cama, serei honesta, faço sexo com mais de 206 milhões de pessoas ao mesmo tempo e você também.

Nossa sociedade é invasiva, e se você é mulher, a situação é ainda mais segregadora, somos criadas com tantos dogmas, moralismos e tabus, que é quase impossível ir para cama apenas com quem se deseja. A sociedade dá um jeito e muitas vezes se joga no lençol, se instala entre suas pernas e julga seu orgasmo, seja ele heterossexual, homossexual, transexual, não binário, não importa, seu gozo não é livre.

Como se não bastasse toda uma comunidade invadir sua cama e te violar continuamente sem sua permissão ou com seu consentimento, já que não consegue reagir, tendo em vista o meio social em que foi inserido, o patriarcado impõe uma espécie de código da mulher honesta, que, além de castrador e discriminatório, chega a ser imoral.

Você já fingiu um orgasmo?

E antes que alguém venha com a famosa frase “homem não consegue fingir”, refaço minha pergunta: homem, você abriria mão de seu prazer de “macho alfa” e de seu falo para satisfazer sua parceira? Substituiria o pênis, pela língua e ou dedos se ela pedisse, sem se sentir “menos homem”? Nossa sociedade não consegue diferenciar o termo “macho” do significado real de “ser homem” e continua dando ao pênis um lugar social que de fato ele não deveria ocupar.

Infelizmente, muitas mulheres fingem o orgasmo para não decepcionar o parceiro, como se orgasmo fosse mais um “prêmio” de satisfação para o outro do que seu próprio prazer.

Finge porque não estava a fim, mas faz sexo para não decepcionar o companheiro ou porque se sente obrigada, afinal, ele é homem.

Dissimula prazer, porque ele, mesmo depois de anos, ainda não aprendeu a tocá-la, mas por ser homem e ela mulher, acredita que nasceu sabendo e não aceita uma ajuda sutil ou é agressivo quando a companheira tenta demonstrar.

Enfim, a mulher finge orgasmo por tantos motivos que descrever e esgotar as possibilidades é praticamente impossível.

Será que, se fosse fisicamente possível, a grande maioria dos homens permaneceriam casados sem ter um orgasmo e fingindo diariamente apenas para agradar a mulher? Tenho plena certeza que a resposta seria negativa. O patriarcado se desenvolve num binômio submissão/exploração intolerante e inflexível, fazendo da mulher o objeto de satisfação masculina, legalizado muitas vezes pela lei.

E aqui, quero deixar algo claro, o patriarcado não se resume ao homem, ou a relacionamentos heteroafetivos, é uma construção social da qual mulheres também participam e contribuem com discursos misóginos e julgadores, incitando esse veneno social e alimentando exclusão da equidade de seu próprio gênero.

O que você acha da impotência sexual?

Quando pensa no assunto, em algum momento lhe vem a imagem de uma mulher, ou você automaticamente imagina um homem?

A impotência masculina é vista socialmente como um problema sério e muito maior do que a impotência feminina, que beira a invisibilidade social.

E antes que alguém fale, “o homem é importante para a proliferação da espécie”, vamos tirar esse argumento patriarcal da boca e lembrar que o espermatozoide não tem capacidade individual de formar um zigoto, ele precisa do óvulo, do útero, ele precisa da mulher para sobreviver. Então, por que continuamos dando ao homem o poder social supremo de aumentar a espécie e a mulher a exclusiva responsabilidade em criar?

Você já se masturbou hoje?

Talvez um dos mais marcantes apontamentos sobre sexualidade de uma sociedade patriarcal seja a masturbação. A sociedade é tão castradora, quando se trata do prazer feminino, que até num ato individual, resolve estabelecer impedimentos morais e sociais que são incutidos na cabeça da menina desde muito nova.

O prazer autodedicado é estimulado aos meninos desde cedo, enquanto as meninas crescem em meio a um tabu social. Muitas garotas são repreendidas ao se tocarem ainda na idade impúbere, enquanto os garotos são liberados para terem acesso a uma infinidade de particularidades sexuais. Além de serem educados (para) que não precisem controlar seus impulsos sexuais, o que cria um permissivo social vergonhoso, perigoso, irresponsável e latente para o desenvolvimento da Cultura do Estupro, que vivemos diariamente.

Mulheres crescem muitas vezes sem conhecer seus próprios corpos ou possuem vergonha do próprio prazer, reprimidas sexualmente, infelizes dentro da satisfação de sua sexualidade, casam, se submetem aos prazeres do “macho alfa”, fingem orgasmo, viram reprodutoras sociais sem direitos sobre o próprio corpo e permanecem caladas, porque lhes é ensinado que sexo é assunto de homem.

Enquanto aos homens é aceitável o abandono paternal, a misoginia, a imposição de suas vontades perante o corpo, o trabalho e a liberdade de expressão das mulheres, inclusive sobre sua própria governabilidade.

Quantos vídeos pornôs são feitos para mulheres? Até vídeos de pornô lésbico são desenvolvidos dentro dos padrões dos fetiches masculinos. Inúmeras são as revistas dedicadas ao ato masturbatório masculino.

As mulheres não possuem aceitação sobre a liberdade de sua sexualidade dentro de uma sociedade patriarcal. E a busca por essa igualdade sexual impinge à essas mulheres rótulos sociais ofensivos e degradantes, como se mulher decente fosse sinônimo de mulher castrada, mulher virgem, mulher recatada e do lar.

Homens falam abertamente do famoso “cinco contra um”, no entanto, quantas mulheres adultas conseguem assumir sem vergonha que praticam o ato da masturbação ou a “siririca”? O assunto é tão velado que até mesmo em roda de amigas é mais fácil surgir uma conversa sobre sexo em grupo do que a confissão da realização do prazer individual.

Se eu me masturbo? Claro que sim, e adoro!

“Prende sua cabra que meu bode está solto”. Tenho uma filha de 7 anos e não importa se é bode ou cabra, ela continuará solta, porque o maior legado que posso dar a ela é o direito de ser livre.

A mulher é educada e criada para satisfazer a lascívia masculina, não lhe sendo permitido a negação sexual, como se seu prazer fosse inferior, diante da “grandeza” de um mastro rijo. Será que os homens sabem que clitóris também tem “ereção”? E quantas mulheres sabem disso?

Quantas conhecem o mecanismo do próprio corpo? Quantas de nós se sentem libertas para realizar fantasias ou pedi-las? Quantas quebram o tabu da vergonha e pedem ao parceiro que ele literalmente “caia de boca”? No entanto, o homem não sente qualquer bloqueio em pedir e às vezes até mandar a parceira lhe fazer uma “chupeta”.

Existem homens que não conseguem achar o clitóris nem se ele piscar verde fosforescente, e isso não é ser “ruim de cama”, é reflexo social, ele simplesmente não se importa.

E vamos combinar, seja parceiro ou parceira, nada melhor que um bom e delicioso sexo oral, sem vergonha, sem pudor! Afinal, o sexo vai muito além de uma básica penetração. O prazer nem de longe depende dela. Muito “macho alfa” ainda não aprendeu que existe mundo além do falo.

Esse texto, embora heteroafetivo, é extensível às relações homoafetivas, pois a sociedade é patriarcal e isso também atinge a homens gays, mulheres lésbicas, pessoas bissexuais, transexuais e não binárias, que também podem sofrer um relacionamento abusivo em face a estrutura social em que foram criados, afinal, não falamos apenas de sexo, falamos de comportamento de uma sociedade doente e castradora.

Senhor patriarcado, a sexualidade e o sexo não se resumem ao órgão sexual, mas, se assim fosse, nossa vagina não é menos importante que vosso pênis e nosso gozo, pertence exclusivamente a nós e a quem escolhermos para isso!

Meu corpo, minhas regras!

Patrícia Mannaro é Procuradora Municipal. Secretária Executiva na Diretoria da Aliança Nacional LGBTI. Membra efetiva da Comissão de Direitos Humanos – OAB/SP. Membra efetiva da Comissão de Criminologia e Vitimologia – OAB/SP. Integrante da Rede Feminista de Jurista – DeFEMde.
*A autora escreve o texto baseada em posicionamentos pessoais e desvinculados das entidades que integra.

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