Trata-se de uma revolta de elite
e da classe média estabelecida em favor da preservação dos seus mecanismos de
distinção e privilégios materiais e morais.
William Nozaki // www.cartamaior.com.br
A crise financeira internacional
de 2008 ao mesmo tempo em que explicitou as contradições do capitalismo
financeirizado abriu as portas para um novo ciclo de lutas globais: Tunísia,
Egito, Bahrein, Iêmen, Líbia, Síria, Espanha, Grécia, EUA, foram palco de
diversas experiências de lutas contra ditaduras políticas, recessões econômicas
e exclusões urbanas.
Merecem destaque nesse caldeirão
as experiências que conseguiram converter insurgências sociais em disputas
institucionais mais amplas, passando da micropolítica dispersa para a
macropolítica robusta com capacidade de afrontar as estruturas do poder e do
capital, como nos casos do Podemos espanhol, do Syriza grego e do Occupy Wall
Street norte-americano.
A despeito das inúmeras
diferenças entre esses movimentos (alguns dos quais partidos-movimentos), há uma
espécie de mínimo denominador comum que os alinhava: parte significativa dessas
iniciativas surgiram de baixo para cima se revoltando contra políticas de viés
liberal, conservador e direitista.
De alguma forma, o Brasil se
inscreve também nesse cenário de lutas globais, sobretudo a partir das Jornadas
de Junho de 2013 que trouxeram consigo o esboço de novas formas de organização
e ativismo e também uma nova agenda articulando direitos urbanos e direitos
humanos, municipalismo associativista e liberdades individuais.
No entanto, nessas plagas
tropicais, as forças de esquerda no poder, salvo raras exceções, tiveram pouca
capacidade e pouca sensibilidade para perceber o surgimento desses novos atores
sociais e dessa nova agenda pública.
O principal partido de esquerda,
PT, ensimesmado nas suas estruturas burocráticas assustou-se com o fato inédito
de não ser ele o protagonista das primeiras convocações para a ocupação das
ruas, e, ao invés de avançar na disputa de hegemonia na sociedade preferiu de
saída repulsar as novidades as tachando de ações direitistas; em movimento
análogo, os governos petistas, na prefeitura de São Paulo e no âmbito federal,
optaram pelo apego iluminista à tecnocracia de planilhas e deram respostas de
políticas públicas equivocadas, erráticas e/ou atrasadas.
Essa combinação de medo e
preguiça fez com que o pêndulo de uma disputa em aberto oscilasse
paulatinamente para a direita, que, a partir de uma associação entre elites,
classes médias, mídia e judiciário aprenderam a se apropriar da gramática
política das ruas. O segundo turno eleitoral em 2014 evidenciou esse conjunto
de tensões, a temperatura política e social seguiu aumentando em 2015 e no
início desse ano, delineando o avanço do autoritarismo político e do
conservadorismo social que agora explicitam suas faces golpistas e
anti-democráticas. Vale destacar: as derrapadas políticas e ambivalências
econômicas apresentadas pelo Governo Dilma só contribuíram para jogar água no
moinho da crise institucional e social em que agora nos encontramos.
Desse modo, os setores mais
progressistas da sociedade se percebem diante de um quadro bastante complexo:
se, por um lado, o PT e o governo precisam ser criticados, por outro lado, é
preciso atentar para que nessa conjuntura tais críticas podem alimentar o
caldeirão do anti-petismo que tem servido somente ao ódio e à intolerância;
mais ainda: se, por um lado, Lula e Dilma foram tímidos em nome da conciliação
ampla e até mesmo retrocederam em certas agendas, por outro lado, ataca-los nessa
conjuntura significa colocar sob risco a própria normalidade do funcionamento
das instituições políticas do país. Não resta dúvidas de que nesse momento
defender Lula e o governo Dilma significa defender o Estado de Direito
Brasileiro e o tripé que o organiza: as instituições democráticas, a
constituição federal e a consolidação das leis trabalhistas.
Nesse sentido, é importante
explicitar: as forças que hoje lutam pela obstrução e pela queda do governo, e
que atuam pela criminalização e pela judicialização da esquerda, o fazem não em
nome daquilo que o PT e o governo têm de problemático, mas sim em nome daquilo
que ele tem de positivo: as conquistas sociais e econômicas que permitiram a
redução da miséria, da pobreza e da desigualdade, em consonância com a
ampliação de direitos. É contra isso que se insurge e que se instala um Estado
de Exceção no Brasil capitaneado por juízes, promotores e procuradores que se
insurgem contra os direitos e a favor dos privilégios seculares que fazem parte
da rotina política e social do país.
A prova desse argumento se
evidencia em uma visada de olhos quando se observa o perfil dos manifestantes
que foram às ruas nesse último domingo (13/03/2016), trata-se majoritariamente
de homens, brancos, adultos ou de meia-idade, de classe média e alta, com
acesso à boa escolaridade. Além disso, são atores sociais que aderem menos a
partidos políticos e movimentos organizados e mais a lideranças individuais
midiáticas e muito conservadoras, esse grupo social prefere o mundo dos negócios
ao universo da política institucional, nessa conjuntura se sentem mais
representados pelo judiciário, pelas policias e pela igreja do que pelos
poderes executivo, legislativo e pelos representantes eleitos. Em última
instância, preferem defender a arena privada da família e dos “bons costumes” à
esfera pública da política e da democracia (vide pesquisa Datafolha).
É curioso e sintomático que uma
parcela da sociedade acredite que há hoje em curso no Brasil um processo de
combate à corrupção, trata-se de uma percepção distorcida e equivocada. Não há
combate à corrupção possível a ser protagonizada por juízes com relações
partidárias, policiais federais descontrolados, promotores que agem ao arrepio
de lei, tudo isso apoiado por lideranças político-partidárias e parlamentares
investigadas por desvio de recursos públicos e outros tantos mal-feitos, todos
endossados por uma parcela da elite e da classe média que não cansa de
reproduzir as ilicitudes do dia-a-dia, com seus pequenos subornos, sonegações
de impostos e toda sorte das pequenas imoralidades presentes no tal “jeitinho”
de quem gosta de se apresentar seguindo a lógica da “carteirada” e do “você
sabe com quem está falando?”.
Disso decorre a pergunta: o que
se quer combater de fato quando se fala em corrupção? Ora, trata-se de uma
revolta de elite e da classe média estabelecida em favor da preservação dos
seus mecanismos de distinção e privilégios materiais e morais. No período de
crescimento econômico, ainda que indignadas, as frações da elite brasileira
conviveram com a mobilidade social e a ascensão das classes populares, mas no
momento de reversão do ciclo econômico, quando o emprego, a renda e a
mobilidade passaram a se desacelerar o acotovelamento geral se converteu em
revolta e ódio contra os de baixo. Isso não significa que as classes populares
e trabalhadoras estejam satisfeitas com o rumo do governo e do país, mas a se
considerar o perfil dos manifestantes do último domingo, fica claro que quem
está catalisando os impulsos e desejos golpistas é parte significativa das
camadas mais abastadas.
Esse é mais um dos paradoxos
brasileiros, ao contrário do que se passa em parte dos ciclos de lutas globais,
aqui temos uma revolta da elite e da classe média contra um governo de viés
progressista e de esquerda. Essa inversão revela como parte da elite nacional
tem nomeado de indignação aquilo que na verdade traduz a sua própria
indignidade.
Créditos da foto: Tânia Rêgo/
Agência Brasil
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