sábado, 28 de outubro de 2017

Grandes Revoluções


A Revolução como Única Alternativa




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1905 E A TEORIA DA REVOLUÇÃO PERMANENTE

Rui Costa Pimenta 

Um dos episódios mais significativos da história do pensamento marxista é o do processo de formação da teoria da revolução proletária atual, à qual damos o nome de teoria da Revolução Permanente.

Esta teoria é comumente associada ao nome de Leon Trótski, dirigente do partido bolchevique e da Revolução Russa de 1917. Foi obra sua a forma final adotada por esta teoria, formulada pela primeira vez como um balanço da Revolução Russa de 1905 no capítulo final do livro Nossa Revolução, depois publicado em separado, com o nome de Balanço e perspectivas. Esta teoria consolidou-se na luta contra as teorias revisionistas ditas da “revolução por etapas” e do “socialismo em um só país”, formuladas pelos mencheviques a partir de 1905 e retomadas por Stálin, no final dos anos 20.

A teoria associada ao nome de Trótski e defendida em conexão com a sua luta, no entanto, não foi apenas a obra intelectual de um único homem, mas o resultado da luta ideológica dos marxistas do início do século e do próprio processo revolucionário da classe operária russa e mundial

Teoria da revolução e o processo social

As primeiras formulações apoiadas na experiência do movimento operário moderno sobre a teoria da revolução proletária foram feitas por Marx e Engels tomando como base a decisiva experiência revolucionária na Europa em 1848. O desenvolvimento das classes e suas relações recíprocas em uma revolução, tal como se apresentaram naquele momento, foram exaustivamente estudados em duas obras magistrais, Revolução e contrarrevolução na Alemanha de Friedrich Engels e As lutas de classes na França, de Karl Marx, ambas um balanço da época revolucionária europeia. Fundamentada nestas obras será erigida a teoria dos revolucionários russos antes, durante e depois da Revolução de 1905.

Caberá aos russos realizar este avanço fundamental e isto por um conjunto de motivos. O movimento socialista na Europa, após 1848 e, particularmente após a Comuna de Paris (1871) enfrentou uma situação em que a revolução não esteve colocada na ordem do dia como um problema que necessitasse uma resolução em termos de tática política imediata. Até o final do século XIX, praticamente, a luta da social-democracia concentrou-se nas reformas políticas e econômicas que visavam a fortalecer e preparar a classe operária para a revolução.

Na Rússia, um dos mais importantes países da Europa, as contradições sociais evoluíam em sentido diverso na medida que o lento desenvolvimento do país permitia a sobrevivência da autocracia de caráter feudal. Em conseqüência desta contradição aguda, ali foi onde floresceu um amplo movimento revolucionário, intelectual e ideológico a princípio, prático e militante depois. As diversas gerações de escritores revolucionários (dos anos 50 e 70 do século XIX), que fizeram a fama da literatura russa em todo o mundo, são a expressão desta aguda contradição social.

Estes revolucionários, no entanto, não eram marxistas e não compartilhavam as concepções relativas à evolução histórica dos marxistas. Contra as suas concepções, afins do anarquismo, os marxistas do final do século XIX foram obrigados a travar uma dura luta de idéias e, nesta luta, formar toda uma concepção própria da revolução que tem como principais expoentes, Jorge Plekhânov, Lênin e Trótski.

Este desenvolvimento histórico concreto costuma ser substituído por uma concepção puramente metafísica da evolução da teoria, como podemos ver na afirmação de Isaac Deutscher na mais conhecida biografia existente de Leon Trótski: Trótski “(…) opôs sua concepção às opiniões que então prevaleciam entre os marxistas . Esta foi a reformulação, senão a revisão, mais radical do prognóstico da revolução socialista efetuada desde a aparição do Manifesto Comunista de Marx, isto é, de 1847” (O profeta Armado, Issac Deutscher).

Neste sentido, a teoria da Revolução Permanente não seria o resultado final de um processo de formação ideológica, mas uma “revisão” e uma ruptura com a “tradição” e o resultado do pensamento genial do grande revolucionário.

Segundo este e vários autores, a teoria de Trótski não seria apenas uma revisão do marxismo, mas também uma descoberta das “peculiaridades russas” em abstrato.

Se a teoria da revolução permanente fosse, como afirmam estes autores, apenas uma descoberta das “peculiaridades do desenvolvimento russo”, ela não seria um desenvolvimento do marxismo aplicado à Rússia, mas a volta às teorias populistas do “destino próprio” do povo russo. Na realidade, neste ponto a teoria de Trótski baseava-se inteiramente nas análises já realizadas pelos demais marxistas russos: “Assim, o poder administrativo, militar e financeiro do absolutismo, que se devia manter, apesar do desenvolvimento social, bastante longe, como pensavam os liberais, de excluir a possibilidade de uma revolução, já não deixava outra saída; além disso, a revolução estaria destinada desde a origem, a tomar um caráter tanto mais radical quanto mais profundo era o abismo que separava o absolutismo da nação. O marxismo russo pode sentir-se orgulhoso por ter sido o único a explicar a direção deste desenvolvimento e a predizer as suas formas gerais, enquanto os liberais se moviam no ‘praticismo’ mais utópico e os narodniki revolucionários viviam de fantasmagorias e acreditavam em milagres. Todo o desenvolvimento social anterior tornava a revolução inevitável” (Balanço e perspectivas, capítulo II, “Particularidades do desenvolvimento da Rússia”).

A idéia da inevitabilidade da revolução russa, bem como do seu caráter tardio e mais radical, eram o patrimônio comum de todo o marxismo teórico russo, de Plekhânov a Lênin.

Para entender tanto o processo real de elaboração da teoria, bem como a originalidade do pensamento do próprio Trótski torna-se necessário analisar alguns aspectos fundamentais da evolução do pensamento revolucionário russo antes e durante a Revolução de 1905.

As origens do marxismo russo

O marxismo foi introduzido na Rússia por um grupo de militantes saídos das fileiras dos populistas da organização Terra e Liberdade (Zemlia y Volia), dos quais o mais importante, em vista da sua contribuição teórica, foi Jorge Plekhânov. A organização formada por uma nova geração de revolucionários rompeu-se em torno do debate sobre a questão do terrorismo, tendo Plekhânov adotado a posição mais coerente com a doutrina anarquista da organização original de condenar o terrorismo como sendo uma definição pela luta política. Como costuma acontecer com a luta teórica, o lado que se mostra mais conseqüente na defesa das suas posições adquire uma melhor compreensão do problema, mesmo quando as suas posições estão equivocadas. Plekhânov veio a considerar que a luta política, que seus ex-companheiros haviam adotado de forma inconsciente, era o verdadeiro caminho para a libertação do povo.

Em 1883, tendo estudado o marxismo no exílio, Plekhânov publica O socialismo e a luta política, um pequeno ensaio dirigido à polêmica contra as concepções populistas, defendendo a luta política da classe operária como a única via efetiva para o desenvolvimento da revolução na Rússia.

No ano seguinte publica uma explicação detalhada da sua nova concepção revolucionária no livro Nossas diferenças. Ali expõe pela primeira vez a idéia de que a Rússia não tem um destino especial, ou seja, que não passará como acreditaram os populistas durante quase meio século diretamente da Comuna Rural, o Mir, para o socialismo através da supressão dos senhores feudais, apoiando-se na propriedade comum camponesa da terra. Segundo Plekhânov, o Mir estava em pleno processo de desagregação pela já avançada penetração capitalista no campo:

“Se, depois de tudo o que dissemos, nos perguntamos uma vez mais: deverá a Rússia atravessar a escola do capitalismo? Devemos responder sem hesitação: por que não deveria ela terminar a escola que começou?

“Todas as mais novas e, portanto, as mais influentes tendências da vida social, todos os fatos mais marcantes nos campos da produção e troca têm apenas um significado que não pode ser nem duvidado nem questionado: estão não apenas limpando a via para o socialismo, eles são em si mesmos momentos necessários e altamente importantes no seu desenvolvimento. O capitalismo é favorecido por toda a dinâmica da nossa vida social, todas as forças que desenvolvem com o movimento da máquina social e por sua vez determinam a direção e a velocidade do movimento. Contra o capitalismo estão apenas os interesses mais ou menos duvidosos de uma certa parcela do campesinato e também aquela força da inércia que ocasionalmente é sentida de maneira tão dolorosa pelas pessoas cultas de todo país agrário e atrasado” (Nossas diferenças, “Conclusão”).

Esta idéia fundamental – que hoje poderia parecer de senso comum ao leitor acostumado com o desenvolvimento capitalista em inúmeros países fora da Europa – estava longe de ser aceita naquele momento, não apenas na Rússia como na Europa. No entanto, esta definição sobre as características do desenvolvimento da sociedade russa foram decisivas para construir um movimento revolucionário da classe operária russa.

A idéia de que não havia desenvolvimento capitalista e de que a revolução em curso não era burguesa tinha a função política de fechar os olhos das massas populares, em primeiro lugar a classe operária, para o fato de que era necessário compreender o caráter social deste processo para afirmar o proletariado como força política independente da burguesia.

A luta pela construção de um partido operário social-democrata na Rússia somente poderia ter como base o desenvolvimento do capitalismo naquele país e, em conseqüência, da classe operária que somente poderia ser criada por ele.

É comum confundir-se a teoria de Plekhânov, que afirmava o caráter capitalista do desenvolvimento russo e, sobre esta base, determinava o caráter burguês da revolução que estava a caminho, com a teoria estabelecida pelo menchevismo, a partir de 1905, e pelo stalinismo a partir da morte de Lênin, a teoria da revolução por etapas.

No momento e nas condições em que Plekhânov formulou a sua teoria, esta tinha um caráter e uma função revolucionária, uma vez que constituía uma hipótese adequada ao nível de desenvolvimento do processo social, do processo de evolução da classe operária e da própria teoria. Nestas condições, a teoria de Plekhânov da revolução burguesa, a qual não definia, porque não se haviam criado as condições, os aspectos táticos da revolução, que serão fundamentais na elaboração das teorias de Lênin e Trotski, assinalava o roteiro real da revolução. Foi por isso que abriu caminho e serviu como alicerce para a construção do movimento revolucionário que resultará na conquista do poder pelo proletariado em 1917. A importância central desta teoria, de um ponto de vista político, era que eliminava as ilusões em uma revolução cujo conteúdo não seria burguês e assim colocaria a classe operária a reboque do programa burguês. A falta de consciência sobre verdadeiro caráter social da revolução somente poderia ser uma fonte de confusão para o proletariado.

A teoria da revolução por etapas do menchevismo e do stalinismo, por sua vez, representa, não um avanço sobre a realidade, mas um recuo diante dela, tendo sido estruturada sobre a base de uma política claramente contrarrevolucionária. A diferença entre as duas teorias pode parecer sutil, mas na realidade, a segunda nada mais é que um dogma da necessidade do capitalismo e da direção da burguesia na revolução, que não estavam presentes na primeira. Sua função política era a de colocar um movimento revolucionário, um partido operário constituído, a reboque da burguesia quando esta visivelmente se desenvolvia em total oposição à burguesia no quadro da revolução burguesa, ou seja, cumpria um papel político oposto à primeira.

Ao contrário das etapas rigidamente separadas por um longo desenvolvimento capitalista que encontraremos depois no dogma stalinista, Plekhânov via a revolução como um processo vivo:

“a presente posição das sociedades burguesas e a influência das relações internacionais no desenvolvimento social de cada país civilizado nos permite esperar que a emancipação social da classe operária russa seguirá muito rapidamente a queda do absolutismo. Se a burguesia alemã ‘veio tarde demais’, a russa veio ainda mais tarde e sua dominação não pode ser longa” (O socialismo e a luta política, grifo nosso).

O passo seguinte na elaboração da teoria marxista da revolução seria dado por Lênin sobre a base do próprio avanço da revolução, em 1905.

A concepção revolucionária de Lênin

O maior passo da teoria da revolução foi dado com Lênin. Como dirigente da principal ala, a ala revolucionária do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), fundado em 1903, Lênin procurou responder não aos problemas teóricos da formação da sociedade russa e do seu desenvolvimento, mas aos problemas táticos apresentados pela revolução.

Apoiado nas teorias desenvolvidas por Plekhânov, Lênin havia tido um papel de destaque na luta contra as teorias populistas em obras como O romantismo econômico, Perólas da planomania populista e, principalmente, na monumental obra O desenvolvimento do capitalismo na Rússia, onde demonstra com base nas teses de O capital de Marx, em abundantes dados estátisticos, a penetração do capitalismo em todas as relações sociais agrárias na Rússia do final do século XIX. Para Lênin, a revolução burguesa era um fato:

“Os marxistas estão absolutamente convencidos do caráter burguês da revolução russa. O que isto quer dizer? Significa que as transformações democráticas do regime político, assim como as transformações e econômicas das quais a Rússia sente a necessidade, longe de implicar por elas mesmas em que o capitalismo e a dominação da burguesia sejam colocados em questão, desimpedirão, pela primeira vez, a via de um desenvolvimento amplo e rápido , europeu e não asiático do capitalismo na Rússia; pela primeira vez tornarão possível neste país a dominação da burguesia como classe” (Duas táticas da social-democracia na revolução democrática).

No entanto, conforme Engels havia demonstrado, o aparecimento tardio da burguesia apontado acima por Plekhânov, tinha como conseqüência inevitável o seu caráter não revolucionário. A sociedade russa precisa livrar-se da superestrutura política criada por séculos de permanência do feudalismo russo, porém, no seu interior, criava-se já uma nova luta e nova classe social que expressa interesses que iam além da sociedade burguesa em formação, o proletariado:

“A revolução democrática, burguesa pela sua essência econômica e social, não pode deixar de exprimir as necessidades de toda a sociedade burguesa.

“Mas esta própria sociedade, que aparece hoje como toda levantada contra a autocracia, está irrevogavelmente cindida pelo abismo que separa o Capital e o Trabalho. O povo sublevado contra a autocracia não é uno. Proprietários e assalariados, uma minoria insignificante de ricos (‘os dez mil’) e dezenas de milhões de não possuidores e de trabalhadores, foram realmente ‘duas nações’ como o disse um inglês clarividente na primeira metade do século XIX . A luta entre o proletariado e a burguesia está na ordem do dia em toda a Europa. Esta luta há muito chegou à Rússia. Na Rússia contemporânea, não são duas forças beligerantes que dão à revolução seu conteúdo, mas mais propriamente duas guerras sociais heterogênas e diferentes: uma no interior do atual regime autocrático e feudal, a outra no interior do futuro regime democrático burguês que nasce diante dos nossos olhos. Uma é aquela de todo o povo pela liberdade (pela liberdade da sociedade burguesa) pela democracia, quer dizer pela soberania absoluta do povo; a outra é a luta do proletariado contra a burguesia, por uma organização socialista da sociedade” (idem).

Tendo em vista estas questões, todo o problema concentrava-se na tática a ser seguida pela social-democracia diante da revolução em curso. Como completar o mais rápida e profundamente a revolução burguesa? Como será derrubado o governo autocrático? Quem o irá substituir uma vez derrubado? Quem convocará a Assembléia Nacional Constituinte que irá modificar o regime político?

“Para instituir um novo regime ‘que expresse realmente a vontade do povo’, não basta qualificar de constituinte a assembléia de representantes. É necessário que esta assembléia tenha ainda a força de ‘constituir’. Consciente deste fato, o Congresso (do partido) não se limitou a formular pura e simplesmente na sua resolução a palavra-de-ordem de ‘Assembléia Constituinte’; ele precisou as condições materiais indispensáveis que permitirão a esta assembléia realizar de fato a sua tarefa. É urgente e indispensável indicar as condições nas quais uma assembléia constituinte de nome possa tornar-se constituinte de fato, pois a burguesia liberal, representada pelo partido constitucional-monarquista, deforma conscientemente, diversas vezes assinalamos, a palavra-de-ordem de Assembléia Nacional Constituinte e à reduz a uma frase vazia” (Duas táticas da social-democracia na revolução democrática)

A solução do problema esta em que:

“O proletariado revolucionário, na medida que é dirigido pela Socialdemocracia, exige que todo o poder seja entregue à Assembléia Constituinte; neste sentido, não busca apenas obter o sufrágio universal e liberdade de propaganda integral, mas também a derrubada imediata do governo czarista e sua substituição por um governo revolucionário provisório” (idem).

Desta forma, Lênin tirou as conseqüências táticas de toda a teoria anterior, formulando claramente os aspectos centrais da atuação do proletariado na revolução e o caminho para que chegasse ao seu termo:

“A resolução do Congresso diz que somente um governo revolucionário provisório, que será o órgão da insurreição popular vitoriosa, é capaz de assegurar a liberdade completa da propaganda eleitoral e de convocar uma assembléia que expresse realmente a vontade do povo” (idem).

A teoria da revolução ficava definida de modo concreto a partir das tarefas práticas a serem realizadas: para concluir a revolução burguesa torna-se necessária a insurreição dirigida pelo proletariado, o qual ocupa um papel central na revolução burguesa, a constituição de um governo revolucionário provisório. A questão incumbia fundamentalmente à definição das relações entre o proletariado no interior da revolução burguesa:

“O resultado da revolução depende do seguinte: a classe operária desempenhará o papel de um auxiliar da burguesia, poderosa pelo assalto que realiza contra a autocracia, mas impotente politicamente, ou dirigirá a revolução popular?” (idem).

Esta tática, que constituía todo um plano de ação revolucionário para o partido do proletariado, defrontou-se, de imediato com a vigorosa resistência da ala direita do POSDR, os chamados mencheviques, que refletindo as tendências da burguesia na revolução opunham-se não apenas à insurreição proletária como a qualquer definição da parte do partido proletário sobre o caráter do governo revolucionário provisório. Toda esta teoria, apresentada como sendo uma política marxista ortodoxa, que visava a preservar a independência política do proletariado na revolução, constituía, na realidade, uma política de completo seguidismo diante da burguesia e das suas manobras contra a própria revolução burguesa.

Do ponto de vista das concepções, a política bolchevique baseava-se em uma apreciação completamente falsa da revolução em geral e da revolução burguesa em particular, que Lênin registra com extraordinária clareza:

“Em países como a Rússia, a classe operária sofre menos do capitalismo do que a insuficiência do seu desenvolvimento” (idem).

Neste sentido, a revolução burguesa, que conduz a libertar o desenvolvimento das forças produtivas dos entraves que permanecem da sociedade feudal cria as melhores condições possíveis para o desenvolvimento do proletariado enquanto classe e para a sua luta contra a própria burguesia:

“A classe operária está, portanto, absolutamente interessada no desenvolvimento o mais amplo, o mais livre e mais rápido do capitalismo. É-lhe absolutamente vantajoso eliminar todos os vestígios do passado que se opõem ao desenvolvimento amplo, livre e rápido do capitalismo. A revolução burguesa é precisamente uma revolução que liquida de modo mais decidido os vestígios do passado, os vestígios do feudalismo (que compreendem não apenas a autocracia, mas também a monarquia) e assegura do melhor modo o desenvolvimento mais amplo, mais livre e mais rápido do capitalismo” (idem).

E ainda:

“Mas daí não decorre de forma alguma que a revolução democrática (burguesa por seu conteúdo econômico e social) não seja de um interesse imenso para o proletariado (…) as pessoas da nova Iskra compreendem de um modo radicalmente falso o sentido e a envergadura desta categoria. Surge constantemente nas suas reflexões a idéia de que a revolução burguesa é uma revolução que não pode dar senão vantagens para a burguesia. Ora, nada mais falso que esta idéia. A revolução burguesa é uma revolução que não sai do quadro do regime econômico e social burguês, ou seja, capitalista. A revolução burguesa expressa as necessidades do capitalismo em desenvolvimento; bem longe de arruinar as bases do capitalismo, ela as alarga e afirma” (idem).

No entanto, não se trata apenas do desenvolvimento social capitalista, mas da própria marcha do processo político. A revolução burguesa é, não obstante, uma liquidação dos instrumentos de opressão classista, do Estado, que a burguesia quer modificar, mas preservar como instrumento de dominação sobre a classe operária. Nesse sentido, Lênin demonstra que, na medida que a burguesia seja uma classe cuja época revolucionária tenha passado, a revolução, mesmo burguesa, ocorre, em um certo sentido, mais em proveito da classe operária do que da própria burguesia:

“Esta revolução traduz, conseqüentemente, não apenas os interesses da classe operária, mas também os de toda a burguesia. A dominação da burguesia sobre a classe operária sendo inevitável no regime capitalista, pode-se dizer com justeza que a revolução burguesa traduz menos os interesses do proletariado que aqueles da burguesia. Mas a idéia de que não traduz de forma alguma os interesses do proletariado é francamente absurda. Esta idéia absurda resume-se na ancestral teoria populista segundo a qual, a revolução burguesa sendo contrária aos interesses do proletariado, não temos necessidade da liberdade política burguesa. Ou então ela se resume no anarquismo, que condena qualquer participação do proletariado na política burguesa, na revolução burguesa, no parlamentarismo burguês” (idem).

A revolução burguesa, neste sentido, apresenta toda uma perspectiva política favorável à classe operária, classe revolucionária da sociedade burguesa e classe mais revolucionária da sociedade russa:

“A revolução burguesa apresenta, também, para o proletariado as maiores vantagens. A revolução burguesa é absolutamente indispensável, no interesse do proletariado. Quanto mais ela seja completa e decisiva, quanto mais conseqüente, melhor estará assegurada a possibilidade para o proletariado lutar pelo socialismo, contra a burguesia. Esta conclusão apenas pode parecer nova, estranha ou paradoxal aos que ignoram o ABC do socialismo científico. Ora, desta conclusão decorre claramente que a revolução burguesa é, num determinado sentido, mais vantajosa para o proletariado que para a burguesia. Veja aqui o sentido preciso em que esta afirmação é incontestável: é vantajoso para a burguesia apoiar-se sobre certos vestígios do passado contra o proletariado, por exemplo, sobre a monarquia, o exército permanente etc. É vantajoso para a burguesia que a revolução burguesa não liquide de modo muito resoluto todos os vestígios do passado, que ela deixe subsistir alguns, dito de outro modo, que a revolução não seja inteiramente conseqüente, não vá até o fim, não se mostre resoluta e implacável” (idem).

Levando-se em consideração este conjunto de problemas, toda a questão resume-se à tática revolucionária, a qual deve ser colocada de maneira concreta:

“Abaixo a autocracia! – todo mundo concorda com esta palavra-de-ordem, não apenas todos os social-democratas mas também todos os democratas e, inclusive, todos os liberais, a crer em suas declarações atuais. Mas o que quer dizer isso? Como deve ser derrubado o atual governo? Quem deve convocar a Assembléia Constituinte, eleita pelo sufrágio universal etc. (…)?” (A social-democracia e o governo revolucionário provisório).

A maneira como os diferentes partidos e os diferentes agrupamentos respondem as estas perguntas definem de maneira inapelável todo o seu conteúdo político e social:

“Estas questões conduzem diretamente à do governo revolucionário provisório ; não é difícil de compreender que, sob um regime autocrático, eleições populares e verdadeiramente livres à Assembléia Constituinte, o sufrágio universal igual, direto e secreto, plenamente assegurado, não são apenas improváveis, mas simplesmente impossíveis” (idem).

“Se reivindicamos seriamente a derrubada imediata do governo autocrático, devemos compreender claramente por qual outro governo queremos substituí-lo. Dito de outra forma, como concebemos a atitude da social-democracia em relação ao governo provisório revolucionário?” (idem).

Neste ponto, as divergências no interior da Socialdemocracia concentram-se na questão de saber se a classe operária deve participar do governo provisório que sairá da insurreição. Para os mencheviques, cuja política é pura passividade, resultante do seguidismo diante da burguesia liberal que contemporiza com a autocracia, a resposta é não. Participar do governo é trair o programa do marxismo que diz que não se deve participar de um governo burguês, invocando a crítica da Socialdemocracia internacional à participação da ala revisionista e reformista de Millerand no governo Waldeck-Rousseau na França, na seqüência da campanha pela absolvição de Dreifuss. Lênin rejeita categoricamente a comparação entre a participação em um governo contrarrevolucionário com a participação em um governo revolucionário, destacando a participação de Varlin no governo da Comuna de Paris. O problema consiste em que caracterizações sociológicas abstratas não podem superar as considerações políticas concretas e, desta forma, Lênin coloca o dedo na ferida ao apontar o problema central:

“A recusa incondicional de participar no governo revolucionário provisório, recomendada neste momento pela ala direita do nosso partido, condena inevitavelmente a atividade do proletariado à indecisão, à instabilidade e à dispersão na preparação, organização e execução da insurreição armada” (Suplemento à resolução sobre a participação da social-democracia no governo revolucionário provisório).

As conseqüências políticas surgem naturalmente da marcha da revolução: sem a derrubada da autocracia a revolução burguesa será um aborto; a autocracia somente pode ser derrubada se o proletariado, diante das indecisões das demais classes e frações de classes sociais, levar adiante a insurreição. A insurreição somente tem sentido se estiver dirigida à formação de um governo revolucionário que consolide e conclua a obra da insurreição, conseqüentemente, o proletariado, de quem dependia a insurreição não apenas devia participar como seria, na realidade, a alma do governo revolucionário.

Para Lênin, havia duas classes capazes de formar a base deste governo: o proletariado e o campesinato, daí a sua famosa fórmula de “ditadura democrática do proletariado e do campesinato”, ou seja, o governo revolucionário seria uma ditadura voltada a esmagar a reação das forças derrubadas pela revolução, mas uma ditadura “democrática” e não socialista, isto é, que não poderia escapar do marco do desenvolvimento capitalista da sociedade. Estas indefinições, que ainda não haviam sido resolvidas pelo desenvolvimento da revolução derrotada somente seriam acabadamente desenvolvidos por ele a partir da guerra mundial de 1914 e do realinhamento de forças que ela provoca no interior da sociedade russa e mundial.

Neste momento, Lênin assinala simplesmente os limites históricos da revolução burguesa em curso:

“Mais esta vitória seja completa e pronta, mais rápida e profundamente revelar-se-ão os novos antagonismos, causas de uma nova luta de classes sobre o terreno do regime burguês plenamente democratizado. Quanto mais impulsionemos a seu termo a revolução democrática, e mais nos encontraremos próximos de abordar as tarefas da revolução socialista, mais a luta do proletariado contra as próprias bases da sociedade burguesa será áspera e brutal” (O socialismo e os camponeses).

Trótski e o livro Balanço e Perspectivas 

Durante a revolução russa de 1905, a luta de idéias e prática em torno dos problemas da revolução serviu para separar nitidamente a ala revolucionária da ala oportunista da Socialdemocracia, saldando os debates anteriores sobre a questão da organização do partido, relativos ao congresso de 1903 da Socialdemocracia. A revolução e as “duas táticas da social-democracia na revolução democrática” iluminaram o verdadeiro conteúdo dos debates sobre a organização, que não diziam respeito à escolha entre um partido democrático e um partido centralizado de maneira burocrática, mas entre uma política revolucionária ativa, que colocava o proletariado à cabeça da revolução burguesa e a levava a seu termo e uma política passiva de completa adaptação à burguesia liberal e às suas propensões a conciliação com a ditadura do Czar.

No entanto, em grande medida por fora da luta interna do partido, coube a um jovem revolucionário, que não se alinhava com as posições bolcheviques mas que havia adotado, no fundamental, a tática da ala revolucionária. Trotski foi capaz, também, de observar em primeira mão um dos aspectos centrais da revolução, o desenvolvimento político do proletariado, de um ponto de vista privilegiado, como presidente do Soviete, o Conselho Operário, da cidade industrial de S. Petersburgo.

Suas conclusões são bastante claras:

“A revolução russa, começando como uma revolução burguesa, em suas tarefas imediatas, desenvolverá rapidamente poderosas contradições de classe e não chegará à vitória a não ser transferindo o poder à única classe capaz de se colocar à cabeça das massas exploradas, o proletariado.

“Uma vez no poder, o proletariado não apenas não quererá, mas não poderá limitar-se ao programa democrático-burguês. Não poderá levar a revolução até o final se a revolução não se transformar em revolução do proletariado europeu. É deste modo que serão ultrapassados o programa democrático-burguês da revolução russa e o quadro nacional; a hegemonia política temporária da classe operária consolidar-se-á em ditadura socialista durável. Se a Europa permanece imóvel, a contrarrevolução burguesa não aceitará um governo das massas trabalhadoras na Rússia e lançará o país bastante para trás, longe de uma república democrática dos operários e camponeses. Chegado ao poder, o proletariado não deverá limitar-se aos quadros da democracia burguesa, mas desenvolver a tática da Revolução Permanente, vale dizer, abolir a fronteira entre o programa mínimo e o programa máximo da Socialdemocracia, avançar rumo às reformas sociais cada vez mais profundas e procurar um apoio direto na revolução no Ocidente europeu” (Préfácio de 1919 a Balanço e Perspectivas).

Estas conclusões, que concluíam as observações e a política traçada por Lênin, são o resultado da aplicação do mesmo método, ou seja, de tirar as conclusões da luta política e não de esquemas abstratos de caráter sociológicos colocados acima do movimento real das classes no processo revolucionário.

Ao mesmo tempo, Trótski rebatia as objeções feitas às possibilidades inscritas no desenvolvimento da revolução:

“É possível que os operários conquistem o poder num país economicamente atrasado antes de o conquistarem num país avançado. Em 1871, os operários tomaram deliberadamente o poder na cidade pequeno-burguesa de Paris; só por dois meses, é verdade, mas, nos centros ingleses ou americanos do grande capitalismo, os trabalhadores nunca tiveram o poder, mesmo por uma hora, nas suas mãos. Imaginar que a ditadura do proletariado depende, de algum modo automaticamente, do desenvolvimento e dos recursos técnicos de um país, é tirar uma conclusão falsa de um materialismo ‘econômico’ simplificado até ao absurdo. Este ponto de vista nada tem a ver com o marxismo.

“Na nossa opinião, a revolução russa criará condições favoráveis à passagem do poder para as mãos dos operários – e, se a revolução prevalecer, é o que se realizará com efeito – antes que os políticos do liberalismo burguês tenham tido a possibilidade de poder mostrar plenamente a prova do seu talento para governar.

“Ao fazer o balanço da revolução e da contra-revolução de 1848-1849 para o jornal americano The Tribune, Marx escreveu:

“‘No seu desenvolvimento social e político, a classe operária está tão atrasada na Alemanha com relação à da Inglaterra e à da França como a burguesia alemã com as destes países. Tal mestre, tal discípulo. A evolução das condições de existência para uma classe proletária numerosa, forte, concentrada e inteligente marcha a par com o desenvolvimento das condições de existência duma classe burguesa numerosa, rica, concentrada e poderosa. O movimento operário nunca é independente, nunca possui um caráter exclusivamente proletário antes que as diferentes frações da burguesia, e sobretudo a sua fração mais progressiva, os grandes industriais, não tenham conquistado o poder político e transformado o Estado de acordo com as suas necessidades. É então que o inevitável conflito entre patrões e operários se torna eminente e já não pode ser adiado’.

“Esta citação é provavelmente familiar ao leitor, porque os marxistas têm abusado de textos semelhantes nos últimos tempos. Ela foi utilizada como um argumento irrefutável contra a idéia de um governo da classe operária na Rússia. “Tal mestre, tal discípulo”. Se a burguesia capitalista não é ainda bastante forte para tomar o poder, dizem eles, então é ainda menos possível estabelecer uma democracia operária, isto é a dominação política do proletariado.

“O marxismo é antes de tudo um método de análise – de análise, não de textos, mas de relações sociais. Será verdade que na Rússia a fraqueza do liberalismo capitalista significa inevitavelmente a fraqueza do movimento operário? Será verdade, para a Rússia, que não pode haver movimento operário independente antes que a burguesia tenha conquistado o poder? Basta colocar estas questões para ver que formalismo sem esperança se dissimula por trás das tentativas feitas para transformar uma observação, historicamente relativa, num axioma supra-histórico” (Balanço e perspectivas, capítulo IV, “A revolução e o proletariado”).

Analisando a luta de classes durante a revolução Trótski pôde perceber, de um modo mais concreto do que a análise do desenvolvimento social à qual a primeira está subordinada, o desenvolvimento concreto das relações de força entre as classes sociais. O desenvolvimento do capitalismo mundial havia colocado, como já se apresentava a análise dos teóricos revolucionários, uma nova relação onde a burguesia já não era capaz de cumprir a sua missão histórica e o proletariado já era o suficientemente desenvolvido para aspirar ao poder político, embora o desenvolvimento nacional ainda não o fosse para o estabelecimento do socialismo.

Desta forma, embora “se pudesse argumentar que as condições sociais russas ainda não estavam maduras para o socialismo”, a luta de classes, por meio da qual as condições sociais se manifestam como ação social dos homens, empurrava o proletariado, pela lógica da sua própria posição” a assumir o poder:

“Afirmando que a nossa revolução é burguesa nos seus objetivos e, por conseqüência, nos seus resultados inevitáveis, fixam-se limites a todos os problemas que levanta esta revolução; mas isto quer dizer que se fecham os olhos perante o fato de o autor principal nesta revolução burguesa ser o proletariado, que todo o curso da revolução empurra para o poder.

“Poder-se-ia então argumentar dizendo que, no quadro de uma revolução burguesa, a dominação política do proletariado será simplesmente um episódio passageiro; seria esquecer que, uma vez que o proletariado tenha o poder nas mãos, não o cederá sem opor uma resistência desesperada; este poder só poderá ser-lhe subtraído pela força das armas.

“Poder-se-ia igualmente argumentar sustentando que as condições sociais da Rússia não se encontram ainda maduras para uma economia socialista; é necessário, no entanto, considerar que o proletariado, uma vez no poder, será inevitavelmente pressionado, pela própria lógica da sua posição, a instalar uma gestão estatal da indústria. A fórmula sociológica geral ‘revolução burguesa’ não resolve de maneira nenhuma os problemas táticos e políticos, as contradições e as dificuldades levantadas pelo mecanismo de uma revolução burguesa determinada.

“No final do século. XVIII, no quadro de uma revolução burguesa cuja tarefa era estabelecer a dominação do capital, a ditadura dos “sans-culottes” revelou-se possível. Este não foi um episódio passageiro; esta ditadura marcou todo o século seguinte, embora tenha rapidamente fracassado contra as barreiras da Revolução Francesa, que a limitavam de todos os lados. No princípio do século XX, numa revolução cujas tarefas objetivas diretas são igualmente burguesas, emerge, como a perspectiva de um futuro próximo, a dominação política inevitável, ou pelo menos provável, do proletariado. E este saberá assegurar que a sua dominação não seja, como esperam alguns filisteus realistas, um simples episódio” (Balanço e perspectivas, capítulo IV, “O proletariado e a revolução”).

Os problemas e as contradições decorrentes desta situação foram resolvidos pelo autor da teoria da revolução permanente de forma também concreta:

“Deixada com os seus próprios recursos, a classe operária russa será inevitavelmente esmagada pela contrarrevolução desde que o campesinato se afaste dela; só terá a possibilidade de ligar a sorte do seu poder político e, por consequência, a sorte de toda a revolução russa, à da revolução socialista na Europa; lançará na balança da luta de classes de todo o mundo capitalista o enorme peso político e estatal que lhe terá dado um momentâneo concurso de circunstâncias na revolução burguesa russa. Tendo o poder de Estado nas suas mãos, os operários russos, com a contrarrevolução atrás deles, lançarão aos seus camaradas do mundo inteiro o velho grito de união que será desta vez um apelo à luta final: Proletários de todos os países, uni-vos” (Balanço e perspectivas, capítulo IX, “A revolução e a Europa”).

Assim como o caráter internacional da economia capitalista havia determinado o caráter “tardio” da burguesia russa, também esta mesma característica fornecia a solução para o problema colocado pelo desenvolvimento da luta revolucionária: do ponto de vista da luta de classes, o proletariado russo chegava ao poder tendo detrás de si os recursos da luta de classes internacional do proletariado europeu e, depois, como o comprovará a Revolução de 1917, do proletariado de todos os países onde havia surgido uma indústria capitalista e dos povos oprimidos pelo imperialismo mundial. Do ponto de vista dos recursos materiais para a superação do atraso russo, era preciso ligar a Revolução Russa com a revolução mundial que criaria as condições para que a Rússia atrasada ultrapassasse todo o período histórico de desenvolvimento capitalista apoiando-se no superior desenvolvimento das forças produtivas de países como a Alemanha, Inglaterra ou a França.

Nestas condições, ao contrário do que pensam muitos, baseados inclusive na propaganda fraudulenta do stalinismo, Trótski não ignorava o caráter burguês da revolução russa ou elaborou uma teoria que, como gostariam muitos esquerdistas subjetivos de hoje, fosse em oposição às concepções materialistas da história do marxismo. Para Trótski, as tarefas da revolução burguesa seriam realizadas pela própria ditadura do proletariado, ou seja, como parte do processo de permanência da revolução que, baseada no regime proletário, resolveria os problemas democráticos que o capitalismo não havia resolvido em um processo permanente que conduzia ao socialismo e não ao estabelecimento do regime democrático. Foi esta compreensão objetiva que lhe permitiu em uma de suas obras teóricas mais importantes, A Revolução Traída, opor o método e as conclusões do materialismo histórico para demonstrar a inviabilidade das alegações dogmáticas e subjetivas da burocracia stalinista de que o socialismo poderia ser realizado na Rússia atrasada, que não havia sequer superado os níveis de desenvolvimento do capitalismo, isoladamente, sem o concurso da revolução e do Estado operário a ser estabelecido por ela nos países capitalistas desenvolvidos.

Com este análise, estava resolvido no plano teórico o que a classe operária russa e sua vanguarda revolucionária resolveria no terreno prático 12 anos depois, com a tomada do poder: a teoria da Revolução Permanente que, a partir daí, sobre a base da simplificação e homogeneização das condições sociais promovida pelo imperialismo em todo o mundo, colocou-se como norma para, senão a maioria, um vasto números de países do mundo.

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Revolução Francesa 1789

Referências e Textos


                                            A REVOLUÇÃO PARA PRINCIPIANTES
                                                                 
                             Em 1789 já se estampava por toda a Europa painel social que receberia o nome de Ancien Régime, mais ou menos o seguinte: o governo da aristocracia, pela aristocracia, para a aristocracia. O rei assumia o poder como representante de Deus na Terra, e esse direito divino só era reconhecido por alguns filósofos desgarrados.
                             Nas vésperas da Revolução deu-se uma reação da nobreza, indevidamente denominada revolução aristocrática.
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                             Os quadros sociais da época podem ser comparados a um armário de gavetas. O clero não era uma classe, mas um grupo privilegiado com seus representantes ao alcance da mão real. Eram os clérigos essencialmente agrícolas, se nos permitem a imagem; terras e mais terras pertenciam ao alto clero; o baixo, o que vinha dos fundos da panela popular, por não abiscoitar benefícios, agitava-se com fervor e até com pruridos democráticos. É natural que a distância entre o alto e o baixo clero foi ficando mais longa e rancorosa.
                                                                                          ***
                             Também dividia-se a nobreza: os nobres por velhos serviços militares de alta monta aos poucos perderam o cartaz diante da nobreza de mão-beijada, que decorria do puro exercício de altos cargos.
                             Nem os nobres se equilibravam em mordomias materiais e honrarias diversas: a nobreza realmente alta, com direito de ir e vir pela Corte, repartia o bolo aristocrático entre si. Mesmo assim, não estavam satisfeitos, remexendo-se à cata de novos (ou antigos) direitos e isenções fiscais.
                                                                                            ***
                             A burguesia era uma classe, porém mais policrônica que uma escola de samba: gente pobre, gente rica, profissões as mais diversas, convencida de que se achava preparada para substituir a nobreza vantajosamente. Os ofícios manuais iam sendo superados nas cidades: os empresários iam conquistando técnicas novas. No campo a mistura social era também confusa. Em números os camponeses preponderavam opressivamente. Com o crescimento da população, o peso aumentava. E a fome, que é irmã da fúria.
                             Deu-se o nome de Terceiro Estado às camadas populares, dos campos e das cidades, mescladas mais tarde pela pequena e média burguesia, que, antes de tudo, pretendiam subir o degrau da igualdade civil. O poder aquisitivo do dinheiro cunhava a face do povo. O preço dos cereais aumentava mais que o preço dos outros gêneros; o povo é que pagava pela desigualdade, conquistando seu pão com sangue, suor e lágrimas. Faltava-lhe trigo e sobrava-lhe ódio contra o nobre. A burguesia desejava a liberdade; o povo só desejava preços acessíveis, mas acabou entrando no picadeiro político.
                                                                                              ***
                             Em 1789, com Luís XVI acomodado no trono, realizam-se eleições; os numerosos levantes devidos à miséria sem ideologia foram controlados pelos soldados. Os representantes do Terceiro Estado proclamaram-se Assembleia Nacional, em clima de entusiasmo popular. No local denominado Jogo da Péla (bolinha de borracha), os deputados pronunciaram um juramento: dar uma Constituição à França. Luís XVI reagiu com toda a energia que lhe faltou em outros lances, revogando as decisões. Aí, houve isto: o rei deixou o recinto, mas o Terceiro Estado não se dispôs a segui-lo. Luís XVI procurou dar um jeito, mandando que a Nobreza e o Clero debatessem o assunto com o Terceiro Estado: a Assembleia Nacional então virou Constituinte.
                                                                                               ***
                             Paris, 14 de julho de 1789. 17 horas. A Bastilha era uma fortaleza do velho regime, até mesmo pelo seu arcaísmo arquitetônico; pelo despotismo permanecia monumental. Na data acima, a Bastilha deixou de ser prisão política e passou a funcionar como figura de retórica. Seria destruída pouco depois, passando o 14 de Julho a ser a data nacional da França.
                                                                                                ***
                             As execuções sumárias e as pilhagens aconteceram. Os burgueses controlavam Paris através de uma Municipalidade e uma Guarda Nacional. O modelo revolucionário parisiense foi copiado na maioria das cidades. O rei recolheu suas forças e visitou a Municipalidade de Paris. Depois Luís XVI fugiu para Metz, esperando socorro dos tronos europeus, mas foi detido em Varennes, recusando-se a maioria da Assembléia a arrancá-lo do trono. Radicalizaram-se os revolucionários com a criação do Clube dos Jacobinos. Os moderados fundaram o Clube dos Feuillants. A Constituição separou os poderes, ficando o rei com moderado Poder Executivo. Os girondinos manobravam até os jacobinos, grupo ao qual pertenciam. O executivo Luís XVI não se deu bem: optou por um ministério girondino e fez uma guerra tortuosa ao "Rei da Hungria e da Boêmia". Os sans cullotes (patriotas em calças civis) e marselheses tomaram o Castelo das Tulherias, instituindo uma comuna insurrecional. Agora quem dá as ordens é a Convenção, eleita por sufrágio. Depois dos massacres de setembro, a nova Assembléia extingue o Reinado. Luís XVI é condenado e executado em janeiro de 1793. Maria Antonieta morre no cadafalso alguns meses depois. Marat é assassinado na banheira por uma jovem. Robespierre é preso num dia e executado no outro. Danton, mal visto por Robespierre, já fora guilhotinado.
                             Marat deixou uma palavra clássica na ideologia revolucionária: Os proletários não têm pátria.

                                                     PAULO MENDES CAMPOS
                                         Jornal do Brasil, 9 de julho de 1989 (Especial)

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A GRANDE  ILUSÃO  JÁ  MORREU
                                                                            

                             É isso mesmo, liberdade, a liberté das bandeiras parisienses, é palavra da atualidade, cheia de ressonâncias e problemas também para nós, que já somos a posteridade. Igualdade é também, evidentemente, um conceito e um tema central, bem como outras grandes palavras de ordem do 1789. Mas não nos deixemos enganar. Nenhuma daquelas mensagens proclamadas pela Revolução conservou os valores que tinha 200 anos atrás. Tudo mudou, além da aparência dos três substantivos mais clássicos. Pretender recuperá-los, como se nada houvesse acontecido, apegar-se a uma continuidade daquela tradição e a uma validade permanente daqueles mandamentos, elegê-los como guia do presente, é estultice ou leviandade.

                             A bem da verdade, cumpre observar algo mais. Não teremos por acaso esquecido pelo caminho outro preceito revolucionário também famoso, mais apto para exprimir objetivos, finalidades, expectativas da humanidade de hoje? Proceder com liberdade e igualdade era o método, o meio exigido pelos novos tempos, mas o fim emergente (lebut, segundo a Declaração dos Direitos) era, porém, outro. Eram, olhem só, a felicidade. Mais precisamente: o objetivo da felicidade foi contemplado pelos pais da Revolução Americana de 1776; já os autores do preâmbulo da Revolução Francesa do 1791 proclamaram a "felicidade de todos" (bonheur de tous) e os constituintes de 1793 uma "felicidade comum".

                             Eis então, um tanto escondido entre as linhas, talvez por receio da retórica, o fulcro de todas as coisas: a verdadeira meta à qual todo princípio, toda garantia, toda conduta política e forma institucional teria de chegar. Felicidade: um conceito que dava, e dá quase medo, tão carregado de expectativas totalizantes e tão próximo da idéia da imortalidade.

                             Repensemos por um instante os anseios que cercavam o conceito de felicidade no século das luzes. Foi século de robusta consolidação de algumas ciências e do surgimento de novas, incluindo um salto decisivo da medicina, tanto que esta pareceu capacitada não somente a enfrentar qualquer doença, mas também em descortinar a visão de um mundo sem doenças. Foi um século de projetos sociais e políticos, materiais e cosmológicos, interpretados pela nascente opinião pública e rigorosa "solução final" para cada falha do presente. Nesse sentido, a multidão nas praças e a exclamação dos oradores nos clubes e nas assembléias propunham o absoluto: operar livremente, equitativamente, fraternalmente, sim, mas "para conseguir a felicidade". Todos felizes, insistia o constituinte francês.

                             Um sonho? Um engano perpetrado pela "razão"? Ou pelo contrário, a exaltação explícita de um instinto primário de cada ser vivente? Até então aquela necessidade instintiva e vital tinha sido resolvida no compasso da salvação e imortalidade da alma, segundo a fé religiosa. Agora passava a ser apontada como fim alcançável, graças a nada mais que boas leis, bom governo, respeito aos direitos naturais. De todo modo, a perspectiva de felicidade surgia de uma tábula rasa que instigava a arriscar tudo, a mudar tudo, até o limite do excepcional e do extremo.

                             Retorna hoje, em contexto diferente, o mesmo sonho ou esperança. Esgotadas no século passado todas as tentativas - políticas, morais e intelectuais - para conseguir um progresso linear e definitivo, o anseio da felicidade se apresenta novamente, sob novos aspectos para as novas gerações. A forma dessas expectativas e as linguagens que as exprimem são originais: depois de tantas ideologias globais, agora se desejam metas menos públicas. Mas, a seu modo, ainda são milagrosas, prevendo para cada indivíduo e cada grupo o mesmo tormento na busca que, de alguma forma, teria de resolver o pesadelo e elevar o destino de todos os viventes.

                             Ao longo de dois séculos, conforme a extraordinária aceleração da história, o problema permanece intocado, na substância, por causa de seu inalterado fundamento antropológico. A busca da felicidade como condição ótima, como meta onde sombras e perigos possam ser reabsorvidos no signo positivo, é própria de toda espécie e de todo ser. Na consciência de si mesma, própria do homem inteligente e sapiens, ela se torna uma explícita finalidade, supera os níveis da necessidade de sobrevivência e de reprodução, para propor-se como objetivo inerente ao existir. Assim reencontramos esta busca em cada sociedade e em todo tempo, nas manifestações mais diferentes. Primitivamente, serão mágicas pagãs. Depois irão desaguar no princípio salvador das grandes religiões. Outras vezes, poderão exprimir-se na virtuosa aceitação da sabedoria, ou no interiorizado fatalismo do estóico, ou, pelo contrário, na adesão ao "tudo e imediatamente".

                             Entre iluminismo e utilitarismo - no tempo da Revolução Francesa -, entre positivismo e socialismo, a "esperança de felicidade" alcançou seus níveis mais elevados. Progresso material, avanços tecnológicos, reformas políticas e civis insinuavam a possibilidade de realizar projetos otimistas. "Felicidade pública", afirmou-se nos tratados: pública, porque baseada em uma natureza única, e que pode ser dominada globalmente, se o sujeito a coloca conforme suas leis e suas ações, mas pública também no sentido de total e definitiva.

                             Intensa, cruel, aconteceu neste século a queda dessas expectativas de felicidade. Mais firmes apareceu ainda, aqui e acolá, aquelas de inspiração religiosa ou sectária, pela força de algumas premissas que não podem ser demonstradas sobre as quais se alicerçam. Nervosas, e muitas vezes desesperadas e autoritárias, aquelas de inspiração política. Impalpáveis, mas capilares aquelas do imaginário coletivo: mas tentam inutilmente, todas elas, ressuscitar a felicidade universal em nome de uma classe demiúrgica ou de um Estado ético.

                             A experiência cotidiana do "moderno", na falência das ideologias voluntaristas ou planificadoras, empurra hoje o anseio de felicidade para dimensões mais circunscritas, mais íntimas. A felicidade, como desejo do homem contemporâneo, é diferente daquela que enxergamos por meio da alça de mira do bicentenário da Revolução. A de hoje dirige-se principalmente para resolver problemas específicos no âmbito de uma dimensão pessoal, privada, como de quem se encontra sitiado pelo mal-estar, sofrimento e perigo num ambiente hostil e ingovernável, num mundo só aparentemente domado e dominado.
                             É assim que o discurso da felicidade continua, ora gritado, ora murmurado, mas sempre mais desmistificado. A história do presente nele se reflete, complicada, dilacerada, sem muitas das ilusões coletivas vividas no tempo da Révolution.


                                  ALBERTO CARACCIOLO    
                   A Revolução Francesa. Isto É Senhor - 1989                                     


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LIBERDADE
                                                       

                             Na linguagem da Declaração do 26 de agosto de 1789, os homens nascem e permanecem livres e iguais nos direitos. A liberdade aparece na lista dos direitos naturais; a seu lado, propriedade, segurança, resistência à opressão. O homem nasce livre e em todo lugar está acorrentado, observara Jean-Jacques Rousseau, intérprete inquieto do "sentimento" moderno da política. A Declaração dos Direitos vem com o eco das teorias do contrato social e da epopéia da Independência das colônias norte-americanas e anuncia a promessa moderna da liberdade, como condição dos seres humanos em sociedade e como princípio que modela as instituições da vida coletiva.

                             A liberdade integra um núcleo de princípios de uma teoria da "cidadania" baseada nos valores da escolha individual. Concordo com Ralf Dahrendorf: a essência do projeto moderno é a idéia de instituições de liberdade, que possam emancipar os súditos, transformando-os em cidadãos. Penso também como Jurgen Habermas: o projeto moderno não está acabado. Fica um problema preliminar: que significa literalmente "liberdade"? Liberdade é um termo vago, o que não vem ser um fato tão estranho. Quase todos os termos importantes de nosso léxico político e moral possuem essa característica. O fato de serem vagos não os torna menos importantes para nós; no entanto, sugerem um pequeno exercício de definição e análise.

                             Definir os significados de liberté hoje em dia, 200 anos depois da Revolução Francesa e a 12 do fim do século que nos é contemporâneo, equivale a interrogar-se sobre as transformações do sentido da liberdade. O ponto é compreender que a liberdade, desde a origem, não indica algo homogêneo. A liberdade é um termo no singular, que vale como plural. A liberdade é essencialmente um catálogo: é a família, ou o sistema, das liberdades. A passagem do singular para o plural não é banal, mas carregada de efeitos significativos. As transformações de sentido das liberdades estão relacionadas às tensões e aos conflitos entre as diferentes liberdades e ao valor que o sistema de liberdade pode ter para o cidadão e grupos diferentes dentro da mesma sociedade. Sugiro que as principais tradições dos juízos e crenças políticas geradas pelo, "Projeto 1789", o liberalismo, o socialismo, a democracia, possam ser relidos como diferentes soluções dos conflitos e das tensões entre liberdade e seu valor para cidadãos e cidadãs.

                             Como sugeriu um magistral ensaio de 1958, Dois Conceitos de Liberdade, o filósofo Isaiah Berlin, há pelo menos uma primeira grande divisão entre as interpretações da liberdade, destinada a marcar as etapas da "liberdades que mudam". A primeira interpretação é aquela da liberdade "negativa", a liberdade dos modernos de Constant e J.S. Mill: ser livre quer dizer poder fazer ou ser aquilo que se escolhe sem interferências por parte de quem quer que seja, em primeiro lugar da autoridade política. Nossos direitos individuais a uma esfera  de opções e escolhas definem nossa liberdade como não impedimento, como diz Norberto Bobbio. Eis a primeira interpretação, sobre a qual se coloca o acento da tradição liberal e sua mais recente retomada libertária.

                             Há também um segunda interpretação que está no centro da tradição democrática: ela coincide com a idéia de liberdade como autonomia, como liberdade "positiva". Aqui aparece o princípio de Rousseau: a idéia de que, na qualidade de cidadãos, temos direito de participar e contribuir na escolha e nas decisões coletivas e, portanto, de participar e contribuir no exercício da autoridade que nos vincula. É fácil perceber como nos dois casos opera uma teoria do valor da escolha individual. Diferentes são, porém, os campos em que ela se aplica. Essa diversidade está na base da evidente tensão entre as duas liberdades: ela existiu para os modernos e continua a existir para nós, contemporâneos, traçando a linha divisória entre a área de nossa moralidade e de nossas escolhas privadas, e aquela da ética e das escolhas públicas.

                             As transformações das democracias pluralistas e os dilemas que temos à frente voltam a propor, sistematicamente, equilíbrios diferentes e recorrentes conflitos na movediça linha divisória. A liberdade "negativa" está próxima da idéia de nosso direito à diferença, à variedade das experiências de vida. A liberdade "positiva" está próxima da idéia de nossa maneira de sermos "iguais", da identidade na cidadania, como membros da Polis que compartilham um destino comum. O exercício dos dois tipos de liberdade e o dilema de suas combinações se baseiam, em todo caso, em um pressuposto: que cidadãos e cidadãs sejam pessoas emancipadas, capacitadas a escolhas autônomas.

                             Com isso, toca-se no problema do valor que as liberdades têm para cada um. A tradição socialista focalizou não somente a extensão dos direitos de cidadania, acentuando a incorporação de grandes massas de população excluídas, mas também sublinhou que o valor da liberdade pode ser solapado pelas desigualdades na capacidade de usar as liberdades. Aqui a liberdade já não se apresenta como "possibilidade" e campo de opções (na arena pública ou privada), mas como "capacidade". Somos efetivamente livres enquanto temos, como homens e mulheres, a capacidade fundamental de controlar as nossas vidas. Como é fácil ver, estamos estabelecendo a ligação como o segundo dos "imortais princípios": a igualdade. Liberdade negativa, liberdade positiva e liberdade como capacidade são peças do mosaico das liberdades. Elas fazem parte daquilo que Dahrendorf chamou o grande projeto dos últimos dois séculos: a generalização da dignidade de cidadãos.

                             Acredito que uma prospectiva de valores políticos que se baseie sobre igual dignidade dos cidadãos tenha de levar a sério o pluralismo dos valores e, em nosso caso, a variedade dos sentidos, dos usos e do valor da liberdade. Isso quer dizer ser consciente do fato de que a tensão e a colisão entre as liberdades, na contemporaneidade (e, esperamos, no futuro), não são acidentes de percurso ou efeitos perversos com respeito à "verdadeira" liberdade, mas se constituem em um elemento irrecorrível do projeto moderno. Conviver com o pluralismo e continuar pensando em uma sociedade melhor não são atividades incompatíveis, embora tornem a vida e a teoria um pouco mais complicadas.

                             Essa é, porém, a garantia de uma utopia política racional de fim de século, que respeite os seres humanos assim como são, com toda a complexidade de suas motivações e de suas aspirações, sem exigir homens e mulheres novos. As liberdades, de mais a mais, atingem as "nossas" vidas e não aquelas de nossos contestadores "transformados", graças à vara de condão dos filósofos políticos (relativamente inócuos) ou o que é pior, e certamente mais sério, pelo exercício do domínio de elites despóticas e tirânicas, sejam elas políticas, religiosas, econômicas, tecnológicas ou militares. A propósito, parece-me que para os netos de 1789, ainda haja muito para ser feito.


    SALVATORE VECA. 
A Revolução Francesa. Isto É Senhor, 1989.  

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                                                       IGUALDADE
                                                         

                             Onde acabou o valor da igualdade? Hoje reina a qualidade e, consequentemente, a diversidade. Também os comunistas, entre os mais empenhados no passado em afirmar a igualdade, declararam alto e bom som que a diversidade não é um desvalor, é um recurso. O discurso nasceu com a diferença sexual, mas em seguida, e rapidamente, estendeu-se a tudo. Hoje os valores se apresentam no espaço como diversidade, no tempo como descontinuidade. O global, o indistinto e o homogêneo parecem estar fora da jogada. A própria "hegemonia", tão exaltada, que significa também pacífica assimilação dos outros, perdeu crédito. O reconhecimento, a legitimação do "outro", como condição básica de nós mesmos, já é uma aquisição cultural difundida. Valeria a estudar em que medida isso depende de 43 anos de paz no Ocidente. O léxico bélico vive hoje apenas nos discursos culturalmente estagnados, nos discursos parlamentares e nas lutas sindicais.

                             Digo logo que estou completamente em sintonia com a onda de revisão que traz de volta ao primeiro plano, entre os princípios revolucionários de 1789, o princípio da liberdade, por tanto tempo ignorado e até ridicularizado pelo movimento operário. Ao mesmo tempo, estou mais do que convencido da atualidade do valor da igualdade. Não do igualitarismo material de 1968, o qual, mesmo partindo de válidas críticas às hierarquias sociais de todo tipo, não produziu um dinâmica política real. Nem penso na igualdade puramente formal, perante a lei. Penso na igualdade como "ter de ser", que a consciência moral impõe diante das desigualdades do mundo.

                             Mas, como conciliar igualdade e diversidade? Não é necessário resumirmos velhos debates sobre a forma de integrar liberdade e justiça, liberalismo e socialismo. Fiquemos no terreno empírico. A diversidade possui características e raízes sexuais, étnicas, religiosas, culturais e econômico-sociais. Se respeito a diversidade, e deixo as coisas como estão, onde vai acabar a igualdade? E, de qualquer forma, estarei em condições de evitar conflitos mais ásperos? Agora, se procuro assimilar o mais fraco ao mais forte, onde vai acabar a diversidade? É a ambiguidade da tolerância que recusa a negação do "outro", mas depois, quando o vê fraco e indefeso, procura altruisticamente trazê-lo para seu próprio nível e, em consequência, negá-lo. O feminismo polemizou longamente com o ambíguo objetivo da paridade.

                             Não existem receitas para curar racismo, machismo, nacionalismo e fundamentalismo. O mal está dentro de cada um de nós, sem momentos de trégua: o receio da "diversidade", que ameaça nossa identidade, e a necessidade da "diversidade", em proveito de nossa mesma identidade, convivem sem interrupção. E antes de tudo é em nosso interior que devemos lutar para procurar uma solução para a relação entre igual e diferente.

                             A reflexão histórica sobre as diversidades é hoje solicitada por eventos armênios ou bálticos de forma preocupante. Sou bastante velho para lembrar a queda dos impérios centrais no começo deste século. esta, então, convencido de que a afirmação das nações teria nos levado à paz universal. Depois aconteceram coisas terríveis e nos anos 30 surgiu, com Zweig, Erfel, Roth e tantos outros, a saudade dos Habsburgos e do sultão de Constantinopla. E agora, com um calafrio, sinto às vezes aflorar uma memória positiva do colonialismo. Surge, então, a proposta de solucionar o problema da igualdade com igual direito para a diversidade, como endereço prático, muito difundido, das "iguais oportunidades": trata-se de dar vida, pelo menos, a iguais condições iniciais acima das quais o indivíduo possa afirmar-se livremente.

                             É um objetivo alto e difícil. As desigualdades nas condições iniciais têm raízes muitas vezes remotas e longos períodos de acumulação. Atualmente, as desigualdades "iniciais" mais agudas encontram-se, mais ainda do que na renda, na informação. É a desinformação que bloqueia o acesso ao trabalho, à saúde e á instrução: é o labirinto da burocracia. Por isso não bastam as leis, é necessário um compromisso coletivo, um salto de cultura. Não poderia ser o objetivo de igualdade de uma esquerda renovada?

                             Na esfera restrita das relações econômicas e sociais o nó da desigualdade apresenta uma novidade. Há cerca de duas décadas, o pensamento comum (de direita ou de esquerda) via no desenvolvimento a condição e o instrumento para difundir a igualdade. Hoje sabemos que não é bem assim. O desenvolvimento produz desigualdade; faz mais ricos os ricos e aumenta a desigualdade para os pobres. Na relação Norte-Sul, já não é possível cogitar de erguer o Sul só desenvolvendo o Norte. Na verdade, é necessário mudar seu desenvolvimento, limitando as tendências atuais. Na minha longa vida política, a palavra "expansão" foi sempre uma chave mágica: hoje surge em meu pensamento a palavra "limite", pelo menos como provocação, para pensar finalmente na qualidade e não somente na quantidade.

                             Sempre na limitada esfera econômico-social, creio necessária uma intervenção a curto prazo. Sou radicalmente favorável a uma rede de segurança, como salário de cidadania ou renda mínima garantida, independente do trabalho prestado e dependente apenas da condição de cidadão - o qual, pelo simples fato de ter vindo a este mundo, tem direito a um mínimo de sobrevivência e reprodução. Acima dessa rede, que deveria substituir as várias  formas de assistência imprópria e descriminatória, teriam de ser adotadas medidas dirigidas para as necessidades excepcionais, principalmente voltadas para ajudar as pessoas a caminhar com suas próprias pernas, a governar-se sem a solidariedade do estado social.

                             Se quisermos escapar de uma solidariedade do pauperismo, que perpetuaria pobreza e necessidade de assistência, devemos solicitar a diversidade e a autonomia do progresso individual e coletivo. Mas, para tanto, é indispensável uma garantia mínima de igualdade. Pode ser apenas um pequeno passo no grande cenário da relação entre o diferente e o igual, mas vale a pena tentá-lo.


VITTORIO FOA. 
A Revolução Francesa. Isto É Senhor, 1989.    

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 FRATERNIDADE
                                                                  
                             Se o rei e as antigas tradições não são sagrados, o que mantém unidas as sociedades modernas? Mesmo sendo evidente que o interesse privado é o motor tanto da evolução cultural quanto da acumulação da riqueza, os fins privados não podem de forma alguma substituir aquela Autoridade, aquela Majestade que sempre invoca o nosso senso de lealdade, e pela qual sempre estaremos prontos a viver e, se necessário, a morrer.

                             Bem cedo percebemos que o sentido da Majestade e do Sagrado não teriam desaparecido da vida moderna somente porque outras idéias laicas tinham ocupado momentaneamente o seu lugar. A gente hoje investe entusiasmo em idéias como Liberdade, Vida, Amor e muitas outras. Entre elas, três sublimes idéias, acima de quaisquer outras, tornaram-se ativas politicamente durante a revolução Francesa. Duas, Liberdade e Igualdade, desde então não saíram mais da cena pública. Mas a terceira do famoso trio, a Fraternidade, deu provas de menor eficiência.

                             As idéias de Liberdade e de Igualdade eram abstratas a ponto de permitir uma vasta gama de interpretações. A maior parte de tais interpretações foi acolhida com euforia e grande foi a variedade de conflitos que explodiram, com resultados bons ou maus, em nome da Liberdade e/ou da Igualdade. A Fraternidade era, porém, um conceito aderente demais ao tempo em que foi concebido. Sem a elasticidade de suas duas irmãs, logo deu para perder fascínio e brilho, bem como força política.

                             Durante a Revolução Francesa a idéia de Fraternidade era estendida aos Estados. Os franceses, que construíram a sua nação juntamente com sua Liberdade, estenderam as mãos para todos os povos da Europa: constitui-vos em Estados livres, igual a nós! Ficou claro, no entanto, que a idéia que exercia maior influência política sobre a Idade Moderna era justamente a idéia do Estado, e que os mais fortes entusiasmos eram convocados pelo nacionalismo. Enquanto os exércitos revolucionários lutavam no coração da Europa, a idéia de Fraternidade sobreviveu apenas como serviçal do nacionalismo. "Assistência fraterna" significava "libertação" de outros povos, independentemente de sua vontade de serem libertados.

                             Napoleão prosseguiu nessa tradição e a completou. Mas, excluindo-se uma pequena minoria na Itália e a maioria dos nobres poloneses, ninguém mais se considerou "libertado" pelo primeiro ditador carismático dos tempos modernos e pelo seu exército estrangeiro. Logo depois do período da Revolução Francesa, vieram à luz duas diferentes estratégias. O czar Alexandre I sonhava a restauração da Comunidade Cristã, embasada no ecumenismo político, enquanto Talleyrand propunha a idéia, nova folha, da legitimação do Estado embasado na soberania. A idéia de Talleyrand por fim acabou vencedora, embora não o fosse no momento em que surgiu. A idéia do Estado foi acolhida com entusiasmo bem maior do que aquela de Fraternidade, e a soberania nacional virou o fim pelo qual a gente estava pronta a viver e, se necessário, a morrer. E é esta a idéia que se difundiu em todo o mundo no nosso século. Às vezes a etnia e a raça substituem o conceito de estado, mas a idéia permanece: cada "nós" deveria ter o direito e a possibilidade, querendo, de constituir um corpo político soberano.

                             A verdadeira "trindade" de idéias da Idade Moderna tornou-se, pois: Liberdade, Igualdade e Soberania Nacional. De qualquer forma, a idéia de Fraternidade resistiu e assumiu duas formas distintas: a idéia do internacionalismo e a idéia do cosmopolitanismo. A primeira interpretação do conceito de fraternidade é comumente associada a Marx e ao marxismo. O internacionalismo implica a procura de um fim concreto e real: um comunismo mundial. O proletariado deveria unir-se para realizar o comunismo em todo o mundo. O cosmopolitanismo, pelo contrário, não pode ser relacionado com qualquer movimento, e é uma forma de entender e de pensar que envolveu diversos âmbitos. A Fraternidade não é somente um meio para alcançar qualquer outro objetivo, mas é sobretudo o fim principal. É um convite à idéia de que todos os povos da terra, todas as nações soberanas, podem viver juntos, um ao lado do outro, numa atmosfera de paz perpétua, garantida pela disposição geral de resolver conflitos através de negociações e diálogos.

                             O nosso século é a idade da falência do internacionalismo. A URSS, a entidade política que adotou oficialmente o marxismo, viro o mais formidável opressor de nações, tanto no interior quanto no exterior de suas fronteiras, depois da queda do colonialismo até hoje. "A ajuda fraterna" dada à Tchecoslováquia foi pura dissimulação das aventuras revolucionárias francesas, embora ocorrida dentro da mais pura tradição da "fraternidade". Resultado: a idéia de Fraternidade internacionalista perdeu todo atrativo, mesmo despertando ainda entusiasmo junto a algumas minorias (asiáticas e latino-americanas), mais uma vez em função do nacionalismo e das lutas étnicas. A gente hoje prefere a diferença, a unidade, o particular, porque não se parecem valores em sintonia com a universalização de um modelo de vida no singular.

                             Na visão cosmopolita a idéia de Fraternidade pode adquirir, entretanto, um novo poder, e ainda que todas as instituições cosmopolitas se tenham revelado grandes decepções. A ONU, por exemplo, é o simulacro da velha idéia da Federação de Estados, quase quanto o internacionalismo soviético foi o simulacro da velha idéia de internacionalismo. Contudo, contrariamente à Fraternidade internacionalista, a Fraternidade cosmopolita permanece uma idéia fortemente vital. Não é preciso ser profeta para afirmar que seu impacto está destinado a aumentar. O nosso mundo tornou-se um "mundo único", independente do nosso gosto. Os problemas que se apresentam a todas as entidades nacionais só podem ser interpretados e enfrentados na perspectiva de "soluções globais". Muitos Estados soberanos têm negócios em comum, diversas organizações sociais compartilham áreas de comum interesse. A Fraternidade cosmopolita está agora tão fortemente ligada à sobrevivência do nosso planeta e da nossa espécie, que se tornou uma necessidade. Este atormentado século XX não pode encerrar-se sem reabilitar a Fraternidade como uma das mais importantes e relevantes idéias da era moderna.


                                      AGNES HELLER. 
A Revolução Francesa. Isto É Senhor, 1989.   

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                                                    MITOS E VERDADES
                                                          
                             Poucos acontecimentos históricos produziram tanta fantasia como a Revolução Francesa. Muitas, de tão repetidas, acabaram entrando até para os livros de petite histoire. Abaixo, algumas das verdades engendradas pelo imaginário popular, e os respectivos desmentidos.

                                             MITO
                             Em 1775, ao ser informada de que os parisienses protestavam contra a falta de pão, Maria Antonieta disse ao seu interlocutor: "Pois se não tem pão, comam brioches." Esse comentário cínico provocou imensa revolta entre o povo, que já detestava a rainha estrangeira por sua devassidão e seus gastos perdulários, que incluíam a compra de um colar pela astronômica soma de um e meio milhão de libras. O caso dos brioches pesou muito na condenação de Maria Antonieta à morte, quando a Revolução a julgou.

                                             VERDADE
                             A rainha jamais falou em brioches. Nas confissões, publicadas dois anos antes da chegada de Maria Antonieta à França, Rousseau atribuiu a frase a uma "princesa" não identificada. Quando jovem, a austríaca era frívola e gastadora, mas não imoral nem desapiedada. O colar foi comprado em seu nome (sem que ela soubesse) por um cardeal que, desejoso de chegar a ministro, envolveu-se com uma aventureira; esta condenada pelo caso, fugiu para Londres e lá se pôs a difundir a lenda negra da rainha.


                                              MITO
                             Instrumento destinado a democratizar a pena capital (antes da Revolução os nobres tinham a cabeça cortada a machado, enquanto os plebeus sofriam a humilhação da forca), a guilhotina provocava, com sua lâmina, morte instantânea e indolor. Aliás, a ausência de sofrimento do condenado foi o principal argumento do filantrópico médico Joseph-Ignace Guillotin ao propor à Assembléia Nacional a instituição da máquina que havia criado e da qual ele acabaria vítima. No Brasil, muitos sabem do triste fim do Dr. Guillotin pelos versos de Noel Rosa - Orestes Barbosa: "... e também morreu por ter pescoço o infeliz/autor da guilhotina de Paris".

                                              VERDADE
                             Ser guilhotinado não era menos humilhante nem menos doloroso do que acabar na ponta de uma corda. O espetáculo era grotesco, os condenados debatiam-se, e frequentemente o mecanismo falhava. Na execução de Luís XVI, por exemplo, a lâmina teve de ser acionada várias vezes, enquanto o rei, ainda vivo, sangrava. Guillotin propôs o emprego mas não foi o inventor da guilhotina, já então existente em países como a Itália e a Escócia, que a usavam para decapitar seus nobres criminosos ou desobedientes. Não é verdade, por fim, que o famoso médico tenha perdido o pescoço em sua máquina. Morreu placidamente na cama, em 1814.

                                                 MITO
                             A Revolução Francesa foi um movimento de ateus. Seus ideólogos e líderes consideravam a crença em Deus mera superstição, propunham-se a acabar com todas as religiões e, para alcançar esse objetivo, fizeram de padres e freiras o principal alvo de sua violência.

                                             VERDADE
                             Os revolucionários eram unanimemente contrários a uma Igreja com privilégios fundiários e vinculada ao Estado, mas poucos professavam o ateísmo. Muitos estavam imbuídos de sentimentos de religiosidade, como Robespierre, que instituiu o culto ao Ser Supremo por considerar o ateísmo danoso à sociedade. Havia numerosos padres e frades nas Assembléias, e os mais radicais tinha lugar de destaque nos Clubes políticos; só foram perseguidos os que se opuseram à laicização do Estado e se mantiveram firmes em sua obediência a Roma.

                                                MITO
                             Conquistada por uma enorme multidão de parisienses no dia 14 de julho de 1789, após encarniçada resistência dos seus defensores, a Bastilha era uma terrível e misteriosa prisão, em cujos frios e escuros calabouços o Antigo Regime confinava, torturava e matava aos poucos os seus  opositores, muitos dos quais foram libertados naquela histórica jornada.

                                           VERDADE
                             A Bastilha foi cercada só por algumas centenas de artesãos, operários e pequenos comerciantes de um bairro vizinho, depois apoiados pela Guarda de Paris. Contrário a um massacre dos atacantes, De Launay, chefe da guarnição, rendeu-se após fraco tiroteio. A Bastilha era uma prisão vip, para aristocratas; naquele dia abrigava apenas sete condenados.
   
     
1789/1989 - A Revolução aos 200 anos. Jornal do Brasil 
(Idéias - Ensaios) 9 de julho de 1989

                                                      
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O ABC DA LIBERDADE
                                                                                  
                                Qual a origem das expressões esquerda e direita? De onde vieram alguns conceitos fundamentais - direitos humanos, soberania popular - usados hoje em dia tão corriqueiramente em todo discurso político? Têm em comum que foram cunhados, ou então reinventados, durante a Revolução Francesa. Idéias como liberdade, igualdade, democracia, sufrágio universal, amplamente discutidas na França no Antigo Regime, foram apropriadas pelos revolucionários, que lhes deram conteúdo moderno. Algumas inovações mais radicais, como o novo calendário, não vingaram, mas o principal permaneceu. Nesta página estão alguns exemplos de criações ou reformulações revolucionárias. A maior parte delas, 200 anos depois, não perdeu sua importância.

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                                              Calendário
                             Desejando ser lembrada para sempre como o acontecimento que rompera com as imperfeições do passado e inaugurara um tempo regenerado e feliz, a Revolução se propôs desde o início a criar um novo calendário. O projeto adotado em 5.7.1793 dividia o ano em dez meses iguais (com cinco dias suplementares e um ano intercalado de tempos em tempos) e o mês em período de dez dias. A medida era também racionalizadora, inscrevendo-se na reforma dos incoerentes sistemas de pesos e medidas em vigor. Inicialmente os nomes dos meses deviam evocar feitos da Revolução, mas o temor de que isso dificultasse a aceitação fora da França levou à preferência por nomes inspirados nos ciclos da natureza: brumário, termidor, germinal etc. O calendário foi revogado em 1.1.1806.

                                        Código Civil
                             Unificar as leis civis era uma antiga aspiração da monarquia, objeto de várias e goradas tentativas que vinham dos tempos renascentistas. No século XVIII chegara-se a um consenso sobre questões como a secularização do casamento, mas não quanto à propriedade, o pátrio poder e a relação Estado-família. A Assembléia Nacional começou finalmente a elaborar o código civil, que, no entanto, só ficaria pronto em 1804, sob Napoleão. O código napoleônico, que durou um século, adotou soluções de compromisso entre o antigo direito e as disposições revolucionárias. Ratificou, por exemplo, a extinção dos privilégios feudais em relação à terra, mas de outro lado reafirmou a autoridade paterna e a inferioridade legal da mulher.

                                          Constituição
                             Vista à distância de 200 anos, a obra dos constituintes da Revolução mostra-se eivada de falhas e incoerências que prejudicaram o seu funcionamento e levaram a crises insolúveis. O seu legado, porém, não é o resultado a que chegaram, mas a premissa de que partiram. Eles rejeitaram as limitadas noções de constituição existentes na época, passando a concebê-la radicalmente como forma de governo que uma sociedade institui para si mesma, "sem que ninguém possa impedi-la". Entenderam também que a soberania da nação não cessa com a aprovação da carta. A nação acompanha a sorte da constituição, e quando esta deixar de ser a expressão direta da vontade geral é soberana para reformá-la ou mesmo revogá-la.

                                           Democracia
                             Na Encyclopédie, que inspirou os líderes da Revolução, a democracia foi definida como "uma das formas simples de governo, na qual o povo, corporificado, detém a soberania". Corporificado através de uma câmara, entendeu-se, porque, ao contrário da pequena cidade grega, agora era impossível a milhões de cidadãos exercê-la de corpo presente. À formulação enciclopédica, Rousseau acrescentou a separação da soberania popular - a ser exercida via legislativo - da democracia, entendida como forma de governo. Outras concepções vieram à luz com a Revolução: a de democracia direta e a de democracia social; a esta, os jacobinos juntaram a noção de virtude cívica, com a submissão da vontade popular à virtude dos seus líderes.

                                       Direita e esquerda                              
                             Como termos políticos, direita e esquerda nasceram na reunião dos Estados Gerais, maio de 1789, quando os delegados da nobreza sentaram à direita do rei e os do Terceiro Estado à esquerda. A disposição foi mantida na Assembléia Constituinte e logo direita e esquerda se tornaram designações correntes. Dada a nitidez de posições dos políticos naqueles anos, não havia dúvida quanto aos dois rótulos: era de direita quem não queria mudanças ou lutava pelo retorno à situação anterior; ser de esquerda era desejar reformas parciais ou profundas. Essa clareza perdeu-se. Os papeis foram muitas vezes trocados. E hoje é frequente falar-se da ala esquerda de um partido de direita e da ala direita de um partido de esquerda.

                                        Direitos do homem
                             A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão foi aprovada pela Assembléia Nacional em 26 de agosto de 1789. Seu texto expressava aspirações humanistas contidas na filosofia das Luzes, mas não se esgotava na retórica. Ao elaborá-lo os deputados tinham em mente a necessidade concreta de legitimar seu futuro trabalho constituinte e estabelecer para ele princípios de ordem geral. Houve grande controvérsia sobre a conveniência, ou não, de que o documento fosse também uma declaração dos deveres do cidadão. Venceu a corrente mais liberal, para quem a inclusão dos deveres tiraria do texto o seu caráter fundador e universal, transformando-o em um lei sobre os limites da liberdade do homem em sociedade.

                                           Eleições
                             Transferida a soberania do rei para a nação, as eleições ocuparam um lugar central na ordem política da França revolucionária. O voto deixou de ser condicionado pela origem social dos eleitores, para tornar-se exercício de poder de indivíduos iguais em seus direitos civis. Era através do voto que o cidadão contribuía para a formação da vontade geral e participava da obra de institucionalização e legitimação da autoridade. Contudo, a Revolução não chegou ao sufrágio verdadeiramente universal: excluiu do corpo eleitoral os menores de 21 anos, as mulheres e as empregadas domésticas (cláusula revogada em 93), limitando a inscrição àqueles que comprovassem o pagamento de certas somas de impostos.
                                                                                                                                                         Federalismo
                             Um dos traços mais distintivos entre a Revolução Americana e a Francesa - tão próximas no tempo - foi a recusa desta última em adotar o sistema federativo. Largamente minoritários, os federalistas depararam-se desde o início com um irremovível obstáculo: a crença de que o federalismo não passaria, na prática, de um feudalismo republicano. Os interesses locais impediriam a formação de uma vontade verdadeiramente nacional e, em última análise, inviabilizariam o governo. Ignorando a divisão de competências criada nos EUA, os adversários da federação indagavam: como governar se as leis nacionais só tiverem vigência plena após a sua aprovação pela maioria das dezenas de assembléias provinciais que terão de se formar?

                                             Forças armadas
                             Uma obra definitiva da Revolução foi a criação de forças armadas nacionais e permanentes. É certo que o novo regime herdou do antigo um exército regular, mas teve de reformá-lo profundamente. Estruturado em bases locais, formado por homens que se alistavam menos pelo sentimento do dever do que para fugir da miséria, dirigido por oficiais com pelo menos quatro gerações de nobreza, o velho exército era inadequado às novas necessidades. A Revolução remotivou e democratizou o recrutamento, aboliu castigos cruéis e humilhantes, amparou viúvas e órfãos, profissionalizou os oficiais e os promoveu pelo mérito. Mudou as táticas para dar rapidez de movimento aos corpos de tropa. Lançou, em suma, as bases do exército moderno.
                                                                                                                                                       Fraternidade
                             Sociologicamente definida como "solidariedade enquanto sentimento vigente em um grupo social", a fraternidade foi a divisa que menos mobilizou o entusiasmo dos revolucionários. Está ausente da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e só foi apresentada como dever moral ao apresentar-se o problema da educação cívica, tendo em vista consolidar a obra da Revolução ameaçada pelos adversários. Em um discurso de setembro de 1792, Mirabeau apresentou a fraternidade como objetivo final da Revolução: "A História narra apenas ações de animais ferozes, entre as quais, de raro em raro, divisam-se heróis; é-nos permitido esperar que estejamos começando a História dos homens, a História dos irmãos".

                                            Igualdade
                             Apaixonadamente discutida no século XVII, a igualdade era uma idéia impositiva nos círculos revolucionários, mas não havia unanimidade no tocante à sua natureza. A noção que acabou por predominar foi a dos iluministas, que concebiam a igualdade primeiramente como a negação das desigualdades hierárquicas do sistema aristocrático. Os homens nascem iguais, proclamavam, e a única desigualdade admissível é a do mérito; a retribuição depende dos serviços que o cidadão presta à sociedade. Segundo Tocqueville, a Revolução fez muito pela igualdade ao universalizar os status jurídicos e políticos, mas forma tímidos os seus passos no sentido de nivelar as oportunidades no plano da existência material.

                                            Legislativo
                             O legislativo revolucionário nasceu quando deputados aos Estados Gerais, considerando-se representantes da soberania nacional, deixaram de acatar decisão do rei para que se separassem e deliberassem como se fossem três câmaras: uma do clero, outra da nobreza e outra do Terceiro Estado. A seguir, se autoconstituiram em Assembléia Nacional Constituinte, a primeira da três assembléias da Revolução, sempre renovadas por eleições frequentes. A última foi a Convenção, que durou até 1795. O legislativo revolucionário não apenas era a fonte do executivo, mas às vezes o exercia través de conselhos sob seu permanente controle. Foi também poder judiciário quando instruiu o processo do rei e o condenou à morte.

                                            Liberdade
                             Aos constituintes de 91 o problema da liberdade apresentou-se sob a forma de alternativa: liberdade do indivíduo ou do corpo social? Optaram sem ambiguidade pela liberdade do indivíduo. Para a maioria de liberais, a liberdade era um bem primordial, anterior à lei. Sieyès, cérebro da corrente liberal, exemplificava: "Exprimem-se mal os que julgam necessária uma lei para garantir ou autorizar a liberdade de imprensa. Não é em decorrência de uma lei que os cidadãos pensam, falam ou escrevem; é em decorrência dos seus direitos naturais." Em contraste, os jacobinos, que subordinavam os interesses do indivíduo aos da nação, cunharam a célebre frase: "Nenhuma liberdade para os inimigos da liberdade."

                                                  Nação
                             Fragmentação política, imprecisão de fronteiras, soberania real, mistura de sangue e de interesses dinásticos, tudo isso relegava a um plano secundário a idéia de nação no Antigo Regime. Subitamente, porém, a imagem da nação emergiu com um conteúdo novo durante a campanha que precedeu a reunião dos Estados Gerais - quando à vontade do rei se opôs a vontade do povo -, inspirado, pela primeira vez, solidariedade, consciência coletiva e configuração política. Daí por diante, na França como nos outros países que se modernizaram, apesar das incertezas institucionais e das divisões entre as classes, a existência da nação como forma de convívio e quadro de referência deixou de ser questionada.

    Plebiscito
                             Embora a Revolução tenha convocado só um plebiscito (em 1800, já na ditadura de Bonaparte, para confirmar a constituição do ano anterior), a idéia plebiscitária estava presente desde os primeiros debates institucionais sobre sufrágio e representação. Os moderados achavam que os deputados, uma vez eleitos, eram livres para deliberar conforme suas consciências; caso se afastassem do interesse geral, seriam desautorizados pelas urnas após um curto mandato. Já os radicais queriam controlá-los passo a passo, submetendo as leis à aprovação popular, ou dos clubes políticos, que várias vezes tentaram auto-instituir-se como órgão de fiscalização dos representantes.

  Política fiscal
                             A Revolução inaugurou o conceito moderno de imposto como contribuição obrigatória, universal e permanente, destinada a financiar os serviços públicos. Antes, o grosso da arrecadação provinha de impostos temporários, criados em função da guerra e outras situações críticas. Receitas ordinárias vinham principalmente dos impostos permanentes que incidiam sobre as classes populares. Sendo difícil arrancar mais dinheiro da nobreza, o rei levantava frequentes e ruinosos empréstimos. Com a Revolução os impostos transformaram-se em "formas públicas de propriedade", e para torná-las estáveis, ela lançou os fundamentos do atual sistema arrecadador, burocrático e racional.

República
                             No início da Revolução os republicanos eram minoritários. Mesmo Robespierre considerava a República, entendida como governo direto do povo, inaplicável à França. Para a maioria, o importante era fortalecer o corpo representativo, minimizando assim o poder de Luís XVI. Só quando este decidiu fugir, o conflito de poderes pareceu impossível de resolver-se no quadro da monarquia constitucional, o que levou à sua abolição em setembro de 92. Mas, nascida sob o signo da exceção, a República também não pôde estabilizar-se. Suprimida por Napoleão, só no final do século XIX conseguiria firmar-se como um sistema de poderes equilibrados e capaz de assimilar as crises, tornando-se deste modo inquestionável.

Revolução
                             Em torno da palavra revolução, os pensadores do século XVIII concordavam apenas quanto à sua natureza, simultaneamente fatal, inesperada e caótica. No tocante aos fins, dividiam-se basicamente entre os que a consideravam restauradora de princípios abandonados e os que viam como instauradora de novos princípios. A Revolução Francesa apagou esse dilema, ao romper com todos os modelos anteriores de revolução (a inglesa, a americana) e mostrar-se fundadora desde o início. A partir de então, registra Mona Ozouf, diz-se que há uma revolução "quando os homens pretendem resolver por meio dela, ao mesmo tempo, todos os seus problemas políticos, sociais, morais, e se transformarem inteiramente eles próprios".

 Unidade
                             No regime monárquico, a soberania baseava-se no pressuposto de que o rei era investido de poderes de origem divina, limitados, contudo, pela lei divina e natural, os costumes e os procedimentos legais. A pretexto, porém, de manter a ordem, os monarcas absolutos passaram a exercer a soberania de modo ilimitado e unitário. A Revolução transferiu a soberania para o povo, mas o seu curso levou a uma distorção semelhante. Para combater a desordem, os revolucionários radicais declararam que a nação devia ser unitária, o que só seria possível com a exclusão daqueles que não eram o povo. Essa lógica levou a um novo despotismo, com o expurgo, via Terror, de toda expressão efetiva ou potencial de diferença e oposição.

  Utopia
                             No processo histórico da revolução Francesa, os sonhos utópicos encarnaram-se primeira e principalmente numa palavra que permeia todo o seu vocabulário: regeneração. O próprio Luís XVI pediu aos deputados que se ocupassem com ele "da regeneração do reino". Mas o que os revolucionários tinham em mente, especialmente os montanheses, era a criação de um "homem novo", em cuja constituição se misturariam a aptidão para a liberdade, a solidariedade e o espírito público com a pureza do "bom selvagem". A idéia de regeneração motivou todas as consciências, mas foram os jacobinos os que a consideraram viável a curto prazo e tentaram levá-la imediatamente à prática mediante a ditadura e a violência revolucionária.   (Mário Pontes)


  1789/1989 - A Revolução aos 200 anos. 
             Jornal do Brasil - Idéias Ensaios, 9 de julho de 1989                       
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                                                               conceitos
                     O JOGO DAS INTERPRETAÇÕES
                                                                   
                             A Revolução Francesa vem sendo interpretada e reinterpretada ao longo dos últimos 200 anos. As crenças predominantes de cada época ajudaram a transformar o mesmo episódio numa espécie de caleidoscópio, suscetível de visões variadas. De 30 anos para cá, especialmente, os historiadores vêm submetendo os acontecimentos de 1789 a um profundo trabalho de revisão. Muitas verdades já sedimentadas caíram: outras floresceram. A seguir, resumidamente, o que os novos autores vêm contrapondo a afirmações há muito sustentadas por historiadores tradicionais.
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Ontem
UM FESTIVAL DE LUZES

                             Inspirada nos princípios do Iluminismo, a burguesia francesa elaborou no século XVIII um diário que correspondia certamente aos seus interesses presentes e futuros, mas era de alcance universal. A esta afirmação que os historiadores de esquerda repetem sempre com muita ênfase, acrescentam-se outra com a qual têm concordado, embora por motivos e com objetivos diferentes, autores liberais e de direita: de tão intensamente divulgada, às vésperas da Revolução essa filosofia tinha impregnado a maior parte da classe burguesa. Conclusão: a Revolução foi um festival das Luzes; as idéias iluministas abalaram a legitimidade da monarquia "por direito divino" muito antes que a burguesia lhe aplicasse o golpe de 1789.

Hoje
LUZES SÓ NOS SALÕES

                             Os autores revisionistas atenuam consideravelmente o papel da filosofia iluminista na preparação e desencadeamento da Revolução. Em 1933, Daniel Mornet disse que as Luzes praticamente só se acendiam nos salões intelectuais de Paris. As idéias iluministas eram escassamente difundidas nos círculos da burguesia empresarial, que, como provou por sua vez Daniel Roche, manteve-se "profundamente conservadora pelo menos até a primavera de 1789." Sem esquecer, observa o historiador inglês Robert Darnton, que o pensamento iluminista não tinha conteúdo revolucionário; o que ele propunha, na verdade, era um programa de reformas liberais que se destinava não a destruir, mas a melhorar e preservar o sistema hierárquico.

Ontem
AS CRENÇAS EM BAIXA

                             Alguns historiadores de esquerda se aproximam bastante dos seus colegas da direita, especialmente dos católicos monarquistas, quando afirmam que a sociedade francesa, sobre pressão do Iluminismo, havia entrado em uma fase de rápido esmorecimento das crenças originárias da religião. O marxista Michel Vovelle, por exemplo, apresentou dados indicativos da "laicização das consciências" em áreas provençais já pela altura de 1750. O misticismo que na época dominava a imaginação popular é visto por certos autores como algo que completou a desmoralização das instituições aristocráticas e religiosas e gerou a crença messiânica de que o regime e a sociedade iam ser regenerados por um banho de sangue.

Hoje
A RELIGIÃO EM ALTA

                             Os historiadores neoliberais contestam que a descristianização da França, no século XVIII, fosse um fenômeno de âmbito nacional. Nas camadas populares, ao contrário, o que houve a partir de 1776 foi um fortalecimento do catolicismo. É certo que algum messianismo desaguou no rio da Revolução; mas o misticismo, a volga do ocultismo, a febre mesmerista e outras manifestações do irracionalismo só serviram de dique às idéias revolucionárias. Tudo isso levou Jacques Solé a afirmar que a generalizada religiosidade do povo francês no final do século "faria da contra-revolução o acontecimento mais importante da Revolução" que tantos ainda vêem como a herdeira direta de uma filosofia avessa à religião.

Ontem
A BURGUESIA FEZ A REVOLUÇÃO

                             Barnave e Mme. de Stael, primeiros historiadores liberais da Revolução, viram-na como um acontecimento inevitável, conduzido pela burguesia. No fim do século XIX, a partir de Jaurès, essa tese foi adaptada ao materialismo histórico de Marx: a Revolução passou a ser vista essencialmente como o desenlace de um longo conflito entre a burguesia em ascensão e a aristocracia em decadência, etapa decisiva da transição do feudalismo para o capitalismo. Albert Soboul, o último marxista de relevo a adotar integralmente a versão standard da Revolução como obra da burguesia, afirmou taxativamente em sua popular história dos acontecimentos de 1789 a 1799: a burguesia "dirigiu a Revolução e dela tirou proveito".

Hoje
A REVOLUÇÃO FEZ A BURGUESIA

                             Nos anos 50, o historiador inglês Alfred Cobban perguntou desafiadoramente aos seus colegas de esquerda: como classificar de burguesa uma Revolução que em momento algum chegou a ser dirigida pela burguesia mercantil ou industrial? Na esteira de Cobban, pesquisadores provaram que em vez de luta aberta entre a burguesia e nobreza, o que havia era uma frequente convergência de interesses. Os burgueses competiam com os nobres não para eliminá-los, mas para ascender ao seu nível de riqueza e poder político. A mudança de ponto de vista resultante dessas revisões foi assim resumida pelo inglês Colin Lucas: "em certo sentido, pode-se dizer que não foi a burguesia quem fez a Revolução, mas foi a Revolução quem fez a burguesia".

Ontem
O CAMPO SEGUE A CIDADE

                             Durante muito tempo, os historiadores de esquerda afirmaram que os trabalhadores e os pequenos proprietários rurais apoiaram as lideranças urbanas da Revolução. Mas ante a evidência de que alguns sangrentos levantes camponeses foram contra-revolucionários, acabaram por admitir a "complexidade" do fenômeno. Mesmo assim, como fez Soboul, insistiram em que o "objetivo fundamental" das populações rurais "coincidia com as metas da revolução burguesa: a destruição dos meios feudais de produção". Soboul (cuja obra é atravessada pela teoria da conspiração) afirma que a guerra da Vendéia, com suas centenas de milhares de mortos, não foi "espontâneo", mas "planejada" pelos agentes da nobreza na emigração.

Hoje
O CAMPO DÁ MEIA VOLTA

                             Para os neoliberais os movimentos camponeses durante a Revolução foram autônomos em relação aos principais grupos em choque. Lembram que havia na França uma tradição de levantes contra as obrigações feudais, mas também contra a modernização do campo. Não é difícil compreender, portanto, que os camponeses tenham apoiado a Revolução quando esta liquidou os direitos feudais e pôs à venda terras confiscadas; e que tenham dado meia volta quando a Revolução tratou de introduzir relações capitalistas no campo. Furet afirma que, a partir de certo momento, o furor anti-religioso dos radicais pesou mais na decisão dos camponeses de pegar em armas contra a Revolução do que as próprias dificuldades econômicas que enfrentavam.

Ontem
UM RAIO FULMINANTE

                             Às vésperas da Revolução, dizem os historiadores marxistas, a nobreza era uma classe em avançado grau de decadência. Estava em geral empobrecida e desempenhava "um papel apenas parasitário", num momento em que a burguesia francesa "já se encontrava à frente da produção" e também "fornecia os quadros da administração monárquica" (Alberto Soboul). Mas, acrescentam, embora enfraquecida, a nobreza ainda conservava privilégios adquiridos na Idade Média. Ao revogar tais direitos - prejudiciais à burguesia e odiosos às camadas inferiores do Terceiro Estado - a Revolução teve o efeito fulminante de um raio que reduziu a cinzas os restos do feudalismo e limpou o canteiro para a definitiva implantação da economia capitalista.

Hoje
UM GENEROSO PÁRA-RAIOS

                             Em boa parte do país, contraditam os historiadores revisionistas, a nobreza não era constituída de "rústicos empobrecidos ou devedores perdulários", mas de competentes administradores de propriedades. Os nobres franceses pagavam mais impostos do que seus pares do resto da Europa e cada vez mais se pareciam com os burgueses. A abolição dos privilégios só feriu de fato os interesses da nobreza palaciana, "relíquia de uma ordem social desaparecida". A França passou a ser dirigida não mais por "homens de berço" e sim por "notáveis", muitos oriundos da nobreza proprietária, defendida da tempestade pelo pára-raios da Constituição de 91. Ficou de fora a pequena burguesia intelectual, que se agruparia à sombra do jacobinismo.

Hoje
AS BOTAS DA INTERVENÇÃO

                             Em 1792, a França entra em guerra contra a Áustria e as potências do Reno porque a Revolução estava sob ameaça de ser esmagada pela bota dos emigrados e dos restauradores estrangeiros. Poucos hoje defendem esta tese com o fervor de antigamente. Mas alguns historiadores de esquerda ainda insistem em atribuir aos girondinos a responsabilidade quase exclusiva pela guerra. No melhor dos casos, dizem, eles teriam feito papel de inocentes úteis; na pior das hipóteses, agiram mancomunados com Luís XVI e a velha elite militar, interessados em levar a França à derrota, o que decerto abriria caminho para a intervenção estrangeira e, consequentemente, para a restauração do regime absolutista.

Hoje
OS MISSIONÁRIOS DE BOTAS

                             Reconhecem os neoliberais que havia interesses monárquicos por trás das manobras guerreiras e que os girondinos erraram ao apoiar a decisão de precipitar a campanha de 1792. Mas, argumentam, a guerra só foi possível porque havia uma opinião radical imbuída do espírito de cruzada, que desejava exportar a revolução. Pessoalmente - e para pôr em xeque os girondinos - Robespierre condenou os "missionários de bota", mas o mesmo não fizeram seus partidários. Estes eram não só a favor da guerra preventiva como da anexação de territórios e da pilhagem dos recursos dos países "inimigos" - o que, ao ser posto em prática, transformou os franceses de libertadores em opressores, neutralizando os revolucionários locais.

Ontem
O TERROR UNIU A NAÇÃO

                             Na medida em que aumentavam as ameaças contra-revolucionárias, crescia também a pressão das "massas populares" para que a Revolução, radicalizando-se, pudesse enfrentar com êxito os eus inimigos. Mesmo com nuances, este ainda é o ponto de vista da esquerda sobre os motivos que levaram progressivamente à mobilização total, à centralização e por fim à desenfreada repressão da ditadura jacobina. Soboul considera positivo o balanço do Terror, pois "excluiu os elementos socialmente inassimiláveis", restaurou a autoridade do Estado, desenvolveu o sentimento de solidariedade nacional, "fazendo silenciar por um momento os egoísmos de classe"; e, sobretudo, porque "permitiu a imposição da economia dirigida".

Hoje
O TERROR ABATEU A MONTANHA

                             Exceto a situação desesperadora do país, todas as alegações para instaurar o Terror são rejeitadas pelos historiadores liberais de hoje. Eles acham abusivo o uso da expressão "massas populares" para designar sans-culottes e jacobinos, entre os quais eram raros os operários e camponeses, que só em poucas ocasiões apoiaram o governo revolucionário. O Terror, dizem, não foi conduzido por legítimos representantes do povo, mas por advogados e padres messiânicos. Segundo Jacques Solé, "não fundiu as aspirações ao mesmo tempo individualistas e comunitárias presentes nas Luzes". E sequer manteve de pé a Montanha: isolado por sua própria política de sangue e desarticulação da economia, o governo jacobino caiu facilmente.

Ontem
TUDO FOI RENOVADO

                             A Revolução levou a França a uma renovação completa, afirmam os historiadores de esquerda. A aristocracia desapareceu. Novas relações de produção estabeleceram-se na cidade e no campo. Vitoriosa, a classe burguesa assumiu o comando efetivo do sistema econômico, e sua ordem foi institucionalizada com a criação de um novo Estado, uma administração essencialmente baseada no mérito, uma justiça fundamentada na igualdade dos direitos civis e uma educação laica, patrocinada pelo Poder Público. Estado e Igreja separaram-se. Impuseram-se em definitivo as idéias de nação e defesa nacional. Surgiu uma nova sociedade, com hábitos novos e exigências culturais que trouxeram como resposta uma nova arte e uma nova literatura.

Hoje
MUITO FICOU COMO ERA

                             A curto prazo, replicam os novos historiadores, a maioria das mudanças foi apenas formal. A nobreza perdeu o status e os direitos feudais, porém manteve-se economicamente poderosas, em especial no campo, onde pouco se alterou a situação de trabalhadores e pequenos proprietários. O capitalismo levaria mais de 50 anos para firmar-se.  A sociedade, na prática, continuou excludente. O Estado napoleônico reatou os laços com a Igreja e suprimiu a liberdade de imprensa: seu famoso Código punia com a morte pequenos crimes, como o furto. O romantismo, primeira grande tendência literária surgida após a Revolução, era na essência antiburguês e frequentemente os seus autores se inspiravam na cultura popular da Idade Média.



                     1789/1989 - A Revolução aos 200 anos. 
           Jornal do Brasil - Idéias Ensaios, 9 de julho de 1989   


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 Revolução Russa 1917

Referências e Textos

                                            O SIGNIFICADO DA REVOLUÇÃO
                                                                    
Primeiro, a experiência soviética de levar a civilização moderna a povos atrasados, e sobretudo a evolução do sistema de sovietes e fazendas coletivas como instrumento de governo autônomo das populações rurais - isso está fadado a ter enorme influência na Europa oriental, na Ásia, e talvez enfim na África e na América do Sul.

Segundo, a U.R.S.S. demonstrou na prática que o socialismo é um regime capaz de funcionar até sob condições as menos propícias, e o sistema soviético de partido único veio colocar perante  todos os países altamente industrializados uma possível solução do conflito entre planificação econômica e liberdade política: vai-se tornando cada vez mais óbvio que a liberdade absoluta da iniciativa privada é incompatível com as exigências do cidadão comum tocante à libertação da fome e à libertação do medo. A realidade objetiva da planificação racional, do pleno emprego e da segurança econômica para todos, na U.R.S.S., já criou padrões dos quais o resto do mundo é obrigado a tomar conhecimento. O exemplo do socialismo soviético está destinado a provocar os mais imprevisíveis efeitos em todos os países, durante largo tempo, inclusive nas potências ocidentais da Europa e da América onde as técnicas do governo soviético têm pelo menos a possibilidade de serem adotadas em toda a linha.

Por fim, reforçando os aspectos já citados, a Revolução Russa demonstrou que os habitantes comuns da terra (e até dos países mais atrasados) podem assumir o poder e governar com muito mais eficácia do que os seus ditos “superiores” . Assim considerada, cada vitória do Exército Vermelho, durante a última guerra contra a Alemanha, despertava muito maior entusiasmo do que uma dúzia de manifestos lançados pela Internacional Comunista.

Lênin abordou esse ponto no artigo intitulado Serão os bolcheviques capazes de conservar o poder? - que ele escreveu três semanas antes da Revolução de Outubro: “Ainda não medimos  a capacidade de resistência dos proletários e camponeses pobres. Mesmo porque a plena medida dessa capacidade só se revelará quando o poder passar às mãos do proletariado; quando dezenas de milhões de pessoas, virem e sentirem, por experiência própria, que o poder estatal está nas mãos das classes oprimidas... Só então vamos ter oportunidade de ver que intocadas forças de resistência ao capitalismo estão latentes no povo... o qual, até lá, ter-se-á mostrado politicamente adormecido, na apatia da miséria e da desesperança, falta de fé em si mesmo como espécie humana e em seu direito à existência, descrente da possibilidade de se ver também servido por todos os recursos do Estado centralizado moderno”.

As vitórias do Exército Vermelho, em 1918-21 e em 1941-45, concretizaram o sonho de um cidadão inglês que viveu há três séculos, o qual afirmava que, numa sociedade comunista, “se um inimigo estrangeiro ousasse penetrar, nós todos nos levantaríamos, por unânime consenso, para defender nosso legado, e seríamos leais uns aos outros”. A um soldado desconhecido, da 54ª Divisão, pouco antes da Revolução de Outubro, ouviu-se dizer coisa parecida: “Quando a terra pertencer aos camponeses e as fábricas aos operários, e o poder aos sovietes, aí teremos certeza de possuir alguma coisa pela qual lutar - e por ela lutaremos!

     (HILL, Christopher. Lênin e a Revolução Russa. 2ª ed., Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967)

                           RICARDO. ADHEMAR. FLÁVIO - HISTÓRIA Nº 2, ed. Lê, 1989

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bloody sunday shooting workers near the winter palace january 9 1905 1




    Fuzilamento dos operários no Palácio de Inverno,
    quadro de Ivan Vladimirov

Um dos itens do vasto arsenal de argumentos utilizados pela burguesia na luta ideológica contra a Revolução Russa é a idéia de que esta teria sido um mero acidente histórico.

Para alguns teria sido um resultado da guerra – como se a guerra não fosse precisamente uma componente essencial do regime capitalista e da sua crise revolucionária -; para outros, seria a punição inevitável recebida pelo regime político russo por não ter aderido mais prontamente ao estado mais sagrado da política que é a democracia burguesa.

Tais fábulas, no entanto, servem para obscurecer a realidade para muitos que buscam compreender de fato este inigualável fenômeno histórico.

A Revolução Russa tem, ao contrário da fábula interesseira, um longo passado. Foi um processo histórico de longa e, se podemos dizê-lo, paciente maturação.

O regime feudal russo, apoiado no latifúndio e na servidão e protegido pela monarquia absoluta, encontrava-se em um completo impasse quando Napoleão Bonaparte e seu Grande Exército invadiram o país em 1812. A vitória russa, conseguida através de uma enorme concentração de forças, de gigantescos sacrifícios e do apelo ao martirizado camponês russo tem como resultado o enfraquecimento terminal do regime feudal. Em dezembro de 1825, parte da nobreza militar a primeira tentativa de derrubar a monarquia. O movimento decembrista é o impulso necessário para voltar a sociedade russa para a revolução. A tenebrosa ditadura de Nicolau I, que se inicia exatamente na data do levante, não conseguiu impedir a revolta política de se manifestar em um vasto movimento de opinião liderado pela brilhante geração intelectual de 1848, conhecida na história russa como a “Geração dos anos 40” composta de homens da altura do filósofo e publicista Alexandre Herzen, do poeta Nicolau Ogarev e do crítico literário Vissarion Bielinski. O movimento revolucionário russo nascia também sob a influência das teorias revolucionárias européias que, apesar do atraso econômico e cultural do país, eram absorvidas com grande rapidez e lucidamente pelos revolucionários.

A luta de idéias era a expressão da revolução camponesa em marcha. Em 1861, o Czar Alexandre II, cede ao imperativo da realidade e decreta o final da servidão. Os anos que vão de 1861 a 1862 vêem uma situação revolucionária que, segundo Lênin, marca com a transformação agrária que deles resulta o início da revolução russa que será concluída em 1917.

Nestes anos revolucionários da década de 60 surgiu a nata da geração revolucionária russa de antes das revoluções de 1905 e 1917, geração em que destaca-se, acima dos demais, o político revolucionário russo por excelência do século XIX, Nicolau Chernichévski. Na luta permanente entre a revolução e a contra-revolução, foram passados em revista as teorias revolucionárias, os programas, as táticas e as formas de organização. Tudo foi testado através de fracassos e vitórias e foi confluindo em uma corrente revolucionária extraordinariamente fecunda: a propaganda política através da imprensa, a agitação de massas, as organizações jacobinas conspirativas, o terror individual e várias outras fórmulas políticas e concepções.

O partido operário russo, surgido já no século XX, apóia-se nesta inigualável tradição da escola revolucionária russa que se combina com a teoria marxista elaborada por Marx e Engels e desenvolvida pelos teóricos da social-democracia e com a enorme experiência política em organização de massas, na luta semi-legal, na atividade parlamentar e na organização sindical do socialismo europeu.

Após a derrota da revolução de 1848, a tradição revolucionária declinou na Europa avançada, a qual conhecerá um grande e último surto de verdadeiro desenvolvimento capitalista, como muito bem souberam compreender Marx e Engels. Enquanto a tradição revolucionária decaía na Europa, na Rússia, apesar de toda a repressão, ela conhecia um desenvolvimento oposto, buscando por uma estrela polar que somente ser achada no marxismo. Daí ser fácil compreender que os revolucionários marxistas russos tenham formado a mais importante corrente de pensamento revolucionário do mundo, apesar do enorme atraso do seu país em relação à Europa Ocidental.

Esta experiência foi refundida pelo marxismo e a lição passada a limpo em 14 anos de intensa luta política e duas grandes revoluções proletárias. Mas deixemos a explicação a quem melhor compreendeu este processo: “o bolchevismo surgiu em 1903 alicerçado na mais sólida base da teoria do marxismo. E a justeza dessa teoria revolucionária – e de nenhuma outra – foi demonstrada tanto pela experiência internacional de todo o século XIX como, em particular, pela experiência dos desvios, vacilações, erros e desilusões do pensamento revolucionário na Rússia. No decurso de quase meio século, aproximadamente de 1840 a 1890, o pensamento de vanguarda na Rússia, sob o jugo terrível do despotismo czarista selvagem e reacionário, procurava avidamente uma teoria revolucionária justa, acompanhando com zelo e atenção cada ‘última palavra’ da Europa e da América neste terreno. A Rússia tornou sua (sublinhado do autor) a única teoria revolucionária justa, o marxismo em mais de meio século de torturas e sacrifícios extraordinários, de heroísmo revolucionário nunca visto, de incrível energia e abnegada pesquisa, de estudo, de experimentação na prática, de desilusões, de comprovação, de comparação com a experiência da Europa. Graças à emigração provocada pelo czarismo, a Rússia revolucionária da segunda metade do século XIX contava, mais que qualquer outro país, com enorme riqueza de relações internacionais e excelente conhecimento de todas as formas e teorias do movimento revolucionário mundial.

“Por outro lado, o bolchevismo, surgido sobre essa granítica base teórica, teve uma história prática de quinze anos (1903/1917) sem paralelo no mundo, em virtude de sua riqueza de experiências. Nenhum país, no decurso desses quinze anos, passou, nem ao menos aproximadamente, por uma experiência revolucionária tão rica, uma rapidez e uma variedade semelhantes na sucessão das diversas formas do movimento, legal e ilegal, pacífico e tumultuoso, clandestino e declarado, de propaganda nos círculos e entre as massas, parlamentar e terrorista. Em nenhum país esteve concentrada, em tão curto espaço de tempo, semelhante variedade de formas, de matizes, de métodos de luta de todas as classes da sociedade contemporânea, luta que, além disso, em conseqüência do atraso do país e da opressão do jugo czarista, amadurecia com singular rapidez e assimilava com particular sofreguidão e eficiência a “última palavra” da experiência política americana e européia” (V. I. Lênin, Esquerdismo, doença infantil do comunismo).

A revolução russa foi um produto de longo amadurecimento. Em certo sentido, pode-se dizer que este processo acelerou a formação revolucionária de toda a classe operária européia que, na sua ausência, teria demorado mais para obter uma teoria revolucionária tão acabada e tão rica como a que presidiu à criação da III Internacional em 1918.

Lênin, o Bolchevismo e a classe operária russa, longe de serem um movimento de ocasião, de revolucionários excêntricos que ganharam na loteria da história, foram a síntese e a personificação deste complexo e original desenvolvimento político que uma vez realizado através do lento e cruel trabalho da história tornaram-se patrimônio dos revolucionários de todos os países. Parodiando o grande pioneiro do pensamento revolucionário russo que foi Alexandre Herzen, podemos dizer que da mesma forma que uma criança na escola vai ter que descobrir o teorema de Euclides, mas não ter que descobri-lo do nada, apenas percorrer um caminho já percorrido, a classe operária mundial vai ter que descobrir a teoria revolucionária do bolchevismo, hoje chamada trotskismo, através do estudo e da experiência, mas não vai ter que descobri-la do nada, refazendo em muito menos tempo todo o caminho percorrido pelos imortais revolucionários russos, dos decembristas a Lênin e Trótski.

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Professor da USP mostra as diferentes leituras da Revolução Russa

Angelo de Oliveira Segrillo apresenta visões diversas do evento histórico que completa 100 anos em 2017


Manifestantes durante a Revolução Russa de 1917 - Foto: Wikimedia Commons
  Manifestantes durante a Revolução Russa de 1917 – Foto: Wikimedia Commons

Cem anos após a derrubada da monarquia absolutista dos czares russos, substituída pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ainda há novas leituras e divergências brotando entre os historiadores e estudiosos da Revolução Russa de 1917. Em celebração a esse centenário, o Serviço Social do Comércio (Sesc) realiza um ciclo de palestras a partir de fevereiro para antecipar um seminário internacional que ocorrerá em setembro. A primeira delas será no dia 23 de fevereiro, às 19h30, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, com o tema História e Historiografia da Revolução Russa, ministrada pelo professor Angelo de Oliveira Segrillo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Entre 1985 e 1992, Segrillo esteve na então URSS, onde obteve seu mestrado pelo Instituto de Moscou e teve a chance de presenciar a derrocada do regime socialista in loco. Com essa experiência, o professor baseia sua palestra no artigo Historiografia da Revolução Russa: Antigas e novas abordagens, que escreveu em 2010 para a revista História, Historiadores, Historiografia, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

“Há muito poucos trabalhos que reúnam a perspectiva dos próprios historiadores russos em relação à Revolução de 1917”, diz o professor. “Tem muita coisa sobre os textos dos historiadores ingleses, norte-americanos, mas, para ler sobre a perspectiva dos russos sem ser na língua russa, é muito difícil. Então eu fiz, nesse artigo, um apanhado bem completo da visão ocidental e também da visão soviética, em seus vários momentos e tendências, tratando da revolução no sentido stricto sensu, isto é, especificamente dos acontecimentos de 1917.”

Por meio de uma observação cronológica dos textos, Segrillo identifica e esmiúça em seu artigo as diferentes leituras feitas por grupos de historiadores, de acordo com seu tempo e origem. Ele aponta que, diferentemente de outros eventos históricos, a Revolução Russa foi documentada conforme ocorria.

“O historiador profissional, à exceção de historiadores pós-modernos, tende a não escrever sobre seu próprio tempo, para que seja possível reunir as fontes primárias e documentos originais e analisá-los de maneira distanciada, o que chamamos de recuo histórico. Por isso a Revolução Francesa, por exemplo, só foi ter sua história escrita muito depois de ter ocorrido. A Revolução Russa, porém, teve panfletos e documentos oficiais arquivados desde o início pelo Istpart, uma seção de documentos históricos do Partido Comunista, devido à preocupação dos bolcheviques em registrar e preservar os fatos. Isso proporcionou aos historiadores russos, alguns dos quais foram inclusive chamados a participar do arquivamento do material, a chance de investigar o que estava ocorrendo ainda na década de 1920”, explica.

Essa possibilidade durou até o final da década de 1920, período em que havia no Partido Comunista animados debates e uma certa pluralidade de ideias (dentro dos limites ideológicos do partido) entre seus membros de diferentes correntes. A partir da ascensão de Josef Stálin ao poder, entretanto, isso acabou, e passou a valer somente a versão oficial da história, contida na obra Kratkii Kurs (ou História do Partido Comunista e de Toda a União (bolchevique): Breve Curso), tomada “como se fosse uma bíblia da história da Revolução Russa”, sob pena de ostracismo ou mesmo morte para quem escrevesse coisa diferente.

Afora o trabalho desses historiadores, naquela época a maior parte dos escritos sobre a revolução era composta de textos autobiográficos de participantes ou testemunhas dela, emigrados russos na Europa e nos Estados Unidos ou análises jornalísticas de correspondentes do Ocidente para jornais e revistas da época e de embaixadores ocidentais. Por esse motivo, segundo Segrillo, os primeiros grandes livros sobre o período não foram escritos por historiadores, que começaram a produzir de maneira embrionária na década de 1930 e, após a Segunda Guerra Mundial, passaram a explorar o tema exaustivamente.

Nesse período, duas correntes antagônicas surgiram: os chamados cold warriors (guerreiros da Guerra Fria) e os revisionistas da década de 1960. A literatura cold warrior, como implica o nome, é profundamente impactada pelo contexto bipolarizado em que se inseriu, sendo extremamente crítica ao regime soviético, tratado como totalitário. Os revisionistas, segundo o professor Segrillo, também influenciados pelo furor rebelde dos anos 1960, especialmente após as revoltas de 1968, buscaram estabelecer uma crítica àquele paradigma.


Enxergando-o como uma leitura elitista, o que o professor chama de “história de cima”, que estuda a revolução apenas a partir do estudo das relações entre a elite czarista e a contra-elite revolucionária dos bolcheviques, os jovens historiadores trouxeram a “história de baixo”, procurando entender o papel do povo no processo revolucionário, deixado de lado pelos cold warriors, o que deu origem à história social da Revolução Russa. “Esse embate entre cold warriors e revisionistas teve seu ápice na década de 1980, quando os autores da história social já haviam alcançado posição de prestígio acadêmico”, afirma Segrillo.
Enquanto isso, após a morte de Stálin e o fim do culto à sua personalidade propiciado por seu sucessor, Nikita Khrushchev, os historiadores da URSS voltaram a ter alguma liberdade para analisar e escrever sobre a revolução, ainda que com as ressalvas impostas pelo partido. De acordo com o professor, “surgiram nesse período visões menos romantizadas do papel dos bolcheviques na Revolução Russa, dando a entender que eles por muitas vezes ‘pegaram carona’ nas tensões de classe e na insatisfação popular para chegar ao poder, além de embates entre as chamadas Escola de Leningrado (hoje São Petersburgo, mais aberta a leituras diferentes da história) e a Escola de Moscou (centro da União Soviética, mais tradicionalista)”.



Então veio a Perestroika e “virou tudo de cabeça para baixo”, nas palavras do professor. A abertura para o capitalismo, que ocasionou o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, trouxe consigo também novas correntes historiográficas no Ocidente e na agora Rússia.

Por um lado, houve uma reafirmação triunfalista por parte dos cold warriors, que enxergaram ali a prova de que a URSS era um gigante totalitário de pedra e barro e que bastou abrir um pouquinho para que tudo fosse abaixo. Os revisionistas, por sua vez, sofreram um baque, mas se recusaram a aceitar a visão elitista dos cold warriors, em vez disso incorporando à sua história social a história política, criando novas interpretações da revolução por meio da união entre a ‘história de cima’ e a ‘história de baixo’.
Além disso, com a abertura dos arquivos do regime, eclodiram estudos sobre um novo objeto: o aspecto regional. “Durante a Guerra Fria, os arquivos de Moscou já eram de difícil acesso aos historiadores, e no interior era ainda mais complicado. O fim do conflito proporcionou uma quantidade enorme de material para pesquisa, tanto dos historiadores ocidentais como dos russos.” Outra corrente historiográfica atual, embora ainda embrionária, segundo Segrillo, é a da linguística, formada por pesquisadores pós-modernos que estudam a linguagem, a comunicação e os símbolos da revolução.

“Na Rússia houve ainda mais novidades, além dos estudos regionais e linguísticos que há também no Ocidente. Os pesquisadores de lá resgataram conceitos como o totalitarismo e a teoria da modernização weberiana, coisas que para a academia ocidental já estavam em desuso, mas em território soviético eram antes proibidas, então é um movimento interessante nesse aspecto”, completa o professor.

Tão variada quanto a historiografia da Revolução Russa é a questão das nacionalidades no território da atual Rússia e das antigas repúblicas soviéticas. “Quando voltei ao Brasil, na década de 1990, notei uma profunda dificuldade das pessoas em entender que a diferença dos povos de lá não pode ser resumida a etnia. São nações diferentes, a Rússia é um estado multinacional. É importante compreender isso para melhor compreender questões além da própria Revolução de 1917.”

Esse assunto será também abordado pelo professor Segrillo em sua palestra, hoje, das 19h30 às 21h30, no CPF do Sesc. O endereço é Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4º andar, Bela Vista, São Paulo. Inscrições podem ser feitas no próprio CPF ou em outras unidades do Sesc em São Paulo. Os valores das entradas são de R$ 9,00 para trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo matriculados no Sesc; R$ 15,00 para idosos, pessoas com deficiência, professores e estudantes da rede pública com comprovante; e R$ 30,00 (inteira).



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Kronstadt demonstration 1917


A IMPORTÂNCIA DA REVOLUÇÃO RUSSA E SEUS ENSINAMENTOS

Rui Costa Pimenta – Transcrição da palestra realizada em novembro de 2012 sobre o aniversário da Revolução Russa

http://www.causaoperaria.org.br/

Bom dia, companheiros.

Nós dividimos esta atividade de palestras em dois temas diferentes. Nesta primeira exposição, vamos tratar da importância histórica da Revolução Russa e na segunda palestra da importância da revolução do ponto de vista da luta revolucionária nos dias de hoje. Nela, iremos tratar de um conjunto de polêmicas que dão lugar a muita confusão, como as consequências da Revolução Russa, o stalinismo e os problemas que normalmente se discutem sobre a ditadura e a democracia no socialismo.


manifestação em Cronstadt em 1917
Cronstadt, 1917
Gostaria de começar chamando a atenção para o fato de que a Revolução Russa, além de ser, talvez, o mais importante acontecimento político da história da humanidade, é também o mais polêmico dos últimos cem anos. Talvez seja mesmo o acontecimento que mais deu lugar a polêmicas em toda a história política da cultura humana. Normalmente, não temos a ideia do volume de críticas, de calúnias, de interpretações de todos os tipos, mas principalmente de interpretações negativas que existem sobre a Revolução Russa. Eu calculo, embora isso seja difícil de saber com certeza, que milhões de livros, ensaios etc. foram escritos sobre esse tema. É um dos assuntos, sem dúvida, mais discutidos dos últimos cem anos, senão o mais discutido. Daí que o problema seja naturalmente confuso para quem aborda a questão. Minha intenção com essa palestra é dar uma contribuição para o esclarecimento das questões centrais que dizem respeito à Revolução Russa.

Uma delas, e esta é uma das maiores deformações sobre o assunto, serve como indicativo da dimensão dessa polêmica. Discute-se, sobretudo, a legitimidade, a viabilidade, o benefício da Revolução Russa.

Os ideólogos da direita, do capitalismo, do imperialismo, procuram a todo momento colocar em questão o fato de se a Revolução Russa teria sido um acontecimento histórico positivo, progressista, que teria promovido um progresso para a humanidade. As revoluções são inevitáveis na história da humanidade, não são resultado de uma ação artificial, mas o resultado do desenvolvimento histórico, de forma que discutir se é positivo ou negativo ter uma revolução ou julgar a validade das revoluções com base no resultado obtido em dado momento, o que é uma coisa muito relativa, é ocioso. As revoluções são o meio pelo qual a história avança.

A primeira coisa que devemos esclarecer é que esse debate, embora atraia muito a atenção, é na realidade um debate secundário e em grande medida distracionista. Porque se nós estamos interessados na luta política dos dias de hoje, a Revolução Russa deve ser vista antes de mais nada como um laboratório da política revolucionária. Como um acontecimento que encerra um conjunto de ensinamentos para quem está travando a luta política aqui e agora, e não uma coisa que se discute como se fosse um fenômeno de tipo religioso, que tivesse um valor moral A ou B, que é a discussão que normalmente se faz.

Esse aspecto da Revolução Russa, como ensinamento da luta política aqui e agora, normalmente não é discutido. A tal ponto que podemos ouvir pessoas em todas as facções da esquerda brasileira e internacional argumentarem frequentemente que a Revolução Russa é um acontecimento em alguma medida ultrapassado. Então, se falamos, por exemplo, que “na Revolução Russa aconteceu tal e tal coisa”, logo algum desses esquerdistas responde: “mas a Revolução Russa foi há 95 anos!”, ou seja, está implícito nessa consideração que a Revolução Russa estaria desatualizada. Ela estaria para a suposta revolução dos dias de hoje, que ainda não conhecemos, como a máquina de datilografia está para o computador. Isso é falso.

É uma impressão que as pessoas têm, mas carece de fundamentação. A Revolução Russa não é uma tecnologia, é um processo social e como um processo social tem uma continuidade, principalmente se estamos falando dos processos sociais de uma determinada época, que guarda uma unidade econômica, política, como a época atual, que embora mude e se transforme, mantém, na base da situação, características homogêneas. Quando foi feita a Revolução Russa, havia o capitalismo, hoje há também o capitalismo. Na época, o capitalismo já havia evoluído para sua etapa imperialista, hoje continuamos nessa etapa. Quando foi feita a Revolução Russa o mundo estava dividido entre países opressores, imperialistas e países coloniais, oprimidos, hoje há a mesma coisa. O capitalismo estava em crise, hoje ele vive a mesma crise, mas ainda maior. Há uma base comum para a análise da Revolução Russa, assim como há uma base, não tão extensa, para que nós possamos aprender, para os dias de hoje, com a Revolução Francesa, da mesma forma como Marx aprendeu com a Revolução Francesa para discutir a revolução na época capitalista. Há essa continuidade.

O primeiro problema, portanto, é justamente esse. A Revolução Russa deve ser objeto de uma discussão moral, que procura debater se ela foi “boa”, “ruim”, se ela teria um “valor positivo” ou se teria um “valor negativo”? Ou ela deve ser acima de tudo um terreno para o aprendizado da revolução? Lênin e Trótski, que foram seus principais dirigentes e teóricos, sendo Trótski o principal historiador da Revolução Russa, consideravam que sim. Lênin considerava que a Revolução Russa nada mais era que o ensaio geral da revolução mundial. Ela seria a última apresentação que se faz no teatro, quando os atores estão vestidos a caráter e ensaiam a peça toda para ver se tudo está correto.

Eu gostaria de chamar a atenção aqui para essa comparação que Lênin faz da revolução com o teatro. Ela é muito importante, porque a revolução tem que ser praticada, pelo menos da parte dos revolucionários. Se a sociedade não pode praticar a revolução, no seu conjunto, os revolucionários devem praticá-la. Quer dizer, a revolução se desenvolve através do aprendizado, como qualquer coisa que os seres humanos fazem. Antes da Revolução Russa, houve uma série de episódios revolucionários menores. Houve inclusive uma revolução em 1905, que os revolucionários disseram ser o ensaio geral da Revolução de 1917; e a Revolução de 1917, o ensaio geral da revolução mundial.

Sobre essa ideia, que é muito importante, vejam uma coisa: a burguesia diz (não sei se todos aqui já perceberam quando veem essa polêmica) que a classe operária, o marxismo, o comunismo, fizeram a Revolução Russa. É isso. Se deu certo, ótimo, se deu errado, pronto; está provado que não dá certo. Finalmente, a burguesia daria à classe operária, porque a burguesia é uma classe muito generosa, uma única oportunidade de acertar. Isso é totalmente absurdo. Totalmente. Por isso Lênin diz que a Revolução Russa não é um acontecimento definitivo; não é a última palavra da história; não é tudo o que poderia ser feito. Não é nem mesmo a revolução mundial: é apenas e tão somente o ensaio geral da revolução mundial. Um ensaio. Vejam que Lênin poderia ser uma pessoa mais vaidosa e exaltar a revolução que ele dirigiu como sendo a coisa mais maravilhosa que já aconteceu. Mas ele era uma pessoa, nesse sentido, bastante concreta, bastante realista a ponto de dizer: “a revolução que fizemos aqui na Rússia, que teve um impacto tremendo na vida de todos, nada mais é que o ensaio geral da revolução mundial”.

Vocês vejam que a revolução burguesa teve, calculando grosso modo, no mínimo 500 anos para se desenvolver. No século XIV, a burguesia de Lisboa, de nossos patrícios e antepassados, realizava uma revolução burguesa que levou o famoso Mestre de Avis, que depois seria Dom João I, ao poder. Um rei a partir do qual irão se desenvolver as grandes navegações. Um empreendimento típico da burguesia, que só foi possível em virtude dessa revolução, que impôs uma derrota à nobreza portuguesa, aos partidários da Coroa espanhola, e deu a supremacia no poder político do País à pequena nobreza e aos comerciantes de Portugal. Isso foi em 1383. A época das revoluções burguesas termina em 1871, com a revolução da Comuna de Paris. Façam as contas, do século XIV ao século XIX. Foram 500 anos para que a burguesia conseguisse consolidar seu poder político sobre o mundo.

Já da revolução proletária, espera-se que ela conclua tudo em alguns anos. Lógico que não faz sentido esse tipo de avaliação. Nós não estamos aqui esperando que a revolução proletária demore 500 anos, mas também não esperamos que demore 15 anos. Até porque já não demorou; ela começou há 95 anos.

Quer dizer, há todo um processo político e esse é o processo de desenvolvimento de uma época revolucionária que é a revolução proletária. Não é a Revolução Russa que é a revolução proletária; a Revolução Russa é um episódio, um capítulo da revolução proletária mundial. E segundo um de seus dirigentes, seria o ensaio geral da revolução mundial. Se ela é um ensaio geral, logicamente nós temos que aprender daquilo que aconteceu naquele ensaio geral. Se estamos interessados nesse drama, nessa peça que é a revolução mundial, então nós temos que começar nos interessando pela primeira grande realização, que foi a Revolução Russa de 1917.

Uma segunda ideia que eu gostaria de colocar aqui está ligada à ideia anterior. A Revolução Russa inaugura uma nova época na história da humanidade. É muito importante que tenhamos isso claro. Não é a época do socialismo; ela inaugura a época da transição do capitalismo para o socialismo. Nós temos um período de estabilização social e temos os períodos em que a sociedade começa a mudar, que são os períodos de transição.

A Revolução Russa foi uma revolução de grandes proporções. Um terço da população mundial esteve envolvida nessa revolução e dezenas de países. Essa é uma coisa também que muita gente não leva em conta quando pensa nesse acontecimento. A Revolução Russa não foi feita em um único país, mas em um conjunto de países que fazia parte do império do czar. Em cada um desses lugares a revolução foi tomando conta; não foi tudo de uma vez e não foi somente com a tomada do poder dos bolcheviques em Petrogrado em outubro de 1917. Em alguns lugares, o processo se desenvolveu inclusive posteriormente. Com a queda da União Soviética, esses países inclusive se separaram porque já eram anteriormente países separados, como a Ucrânia ou a Geórgia. A União Soviética, que veio a se formar como resultado da revolução, era uma república federativa de vários países, não era um único país. Ela foi feita no sentido de constituir um país único, mas dela participaram vários países. Ou seja, era uma revolução de grandes proporções e marca, de maneira indiscutível, a abertura desse período de transição. Nós podemos discutir aqui, como muitos discutem, se o socialismo morreu ou não morreu, o que até debateremos na segunda palestra dessa atividade, mas uma coisa tem que ficar clara: com a Revolução Russa e com os acontecimentos posteriores, as centenas de revoluções que aconteceram depois no mundo, fica claro que o mundo entrou em uma época revolucionária e que ele continua nessa etapa, por mais que a imprensa capitalista procure apresentar tudo como uma grande estabilidade, como não havendo uma revolução. As guerras e revoluções, as catástrofes sociais que são extremamente familiares para nós, são parte do período de transição. Do período de transição da época capitalista para a época socialista. Nós estamos no meio desse período e pode acontecer muita coisa, muitas idas e vindas, pois esses períodos não são um desenvolvimento em linha reta, muito pelo contrário, mas esse processo é irreversível. Não adianta a imprensa capitalista falar que acabou o socialismo. Isso não tem a menor importância. Seria preciso reverter o período de transição, que marca uma crise profunda do capitalismo, e o capitalismo rejuvenescer, coisa que, obviamente, logicamente, é impossível de acontecer, nunca aconteceu com nada. Só acontece no mito. No mito há o rejuvenescimento, há o mito da fonte da juventude, mas no mundo real as coisas costumam crescer, amadurecer, envelhecer e morrer. O destino do capitalismo é esse e nós estamos na fase final de desenvolvimento do capitalismo, que é a etapa de transição. O período de ouro do capitalismo já passou há muito tempo. Todos os males que nós vemos vêm daí.

Uma terceira ideia que eu gostaria de colocar aqui diz respeito à importância histórica da Revolução Russa, que é algo também propositalmente ignorado. Marx, quando descreve o processo da revolução, quando descreve que a revolução é toda uma época de revolução social e não um ato único, destaca também que a revolução proletária é diferente das revoluções que aconteceram anteriormente. Isso porque essas revoluções anteriores acabaram por reestabelecer alguma forma de sociedade de classe, de sociedade contraditória dividida entre exploradores e explorados, oprimidos e opressores, entre pobres e ricos. A revolução proletária, por sua vez, não apenas acaba com o capitalismo, que é uma forma específica de sociedade contraditória, mas acaba com milhares de anos de uma sociedade dividida em classes. Ela coloca em pauta a reunificação interna dessa sociedade, abolindo essa contradição entre ricos e pobres, entre exploradores e oprimidos. A Revolução Francesa acabou com o feudalismo, que era uma forma de sociedade contraditória, dividida em classes, e deu lugar ao capitalismo, que é outra forma de sociedade contraditória dividida em classes. A revolução proletária socialista tem a tarefa não só de acabar com uma determinada forma de exploração, como de acabar com toda a exploração.

A classe operária é a última forma de classe explorada. Ela não é, como acontecia com a burguesia, uma classe potencialmente opressora e exploradora. Ao abolir a sociedade capitalista, a classe operária não se constitui como classe dominante, ela abole também a sua própria existência enquanto classe social. Então, quando falamos em revolução socialista, nós estamos falando de uma mudança social que é muito maior que a revolução burguesa ou as revoluções anteriores. É uma mudança muito mais radical na história da humanidade. Por isso Marx fala que com o capitalismo encerra-se a pré-história da humanidade, pois ele considerava que, do capitalismo para trás, não há uma verdadeira história humana, mas uma história prévia, uma história preparatória. Isso porque o grau de controle que o ser humano tem sobre a sociedade onde ele vive no capitalismo é praticamente nenhum, e o socialismo daria ao ser humano um controle consciente de sua própria sociedade. Essa é uma transformação muito profunda, é o que Engels chamou de “o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade”.

É lógico que o homem sempre irá viver no reino da necessidade do mundo material, disso não há como escapar. As ações humanas são ações necessárias, determinadas pelo mundo material. No entanto, no que diz respeito à sua organização social, o ser humano deixaria de ser comandado e passaria ao comando da sociedade. Ele passaria de ser uma vítima da economia para comandar a economia; passaria de sofrer passivamente os efeitos de uma economia que ele não controla, para colocar a economia a serviço de toda a humanidade e assim por diante. O salto do reino da necessidade, daquela escravidão dos fatos sociais e econômicos, para o reino da liberdade, ou seja, a liberdade que o ser humano teria de controlar conscientemente a sociedade em que ele vive.

Para compreendermos bem o problema da Revolução Russa são necessárias essas explicações prévias. Que ela foi uma necessidade histórica, que ela é um marco divisório da época, que ela é um primeiro passo, um ensaio geral, e que implica em uma transformação muito maior. Esse último fato, inclusive, é importante porque temos que prever que para que o socialismo possa ser implantado, a convulsão social, a transformação social, teria que ser muito maior do que aconteceu com as revoluções burguesas. As revoluções burguesas parecerão, até parecem já hoje em dia, se olharmos bem, uma tempestade em um copo d’água perto da convulsão que é a revolução proletária, a transformação da sociedade capitalista em uma sociedade socialista, dada a profundidade da modificação que está em pauta e a complexidade da sociedade que está se criando. Levando-se em consideração tudo isso, podemos dimensionar adequadamente o problema da Revolução Russa.

Dito isso, eu gostaria de chamar a atenção de todos, porque nós não temos a possibilidade aqui de fazer um estudo detalhado da Revolução Russa, de alguns aspectos centrais do mecanismo político interno da revolução.

Primeiramente, é importante assinalarmos que a Revolução Russa em grande medida é, ao mesmo tempo, o resultado do amadurecimento das contradições internas da sociedade russa, e também o resultado do amadurecimento político dos revolucionários russos.

Uma coisa que chama a atenção na Revolução Russa é que ela foi preparada por uma longa luta política dentro da Rússia.

As primeiras manifestações da Revolução Russa são de 1825, quase cem anos antes da Revolução de 1917. Nesse período, os revolucionários foram lutando e a luta deles tinha um caráter muito claro, no sentido de definir uma teoria, uma compreensão da realidade, assimilando aquilo que seria o mais avançado da ciência social, da política revolucionária, dos países europeus próximos da Rússia.

Foram travadas inúmeras lutas e inúmeras organizações políticas se formaram e despareceram até que o movimento operário russo assimilou, como teoria, como doutrina, como ideia revolucionária, o marxismo. O que vem a acontecer já no final do século XIX.

Um dos aspectos chave da Revolução Russa é a existência de um partido capaz de fazer aquela revolução e o amadurecimento desse partido foi um processo muito longo. Muitos estudiosos falam, por exemplo, que a Revolução de Outubro foi um “golpe de mão” do Partido Bolchevique. Não foi. A Revolução Russa se desenvolveu lentamente. Ela se desenvolveu como se fossem as camadas geológicas do planeta Terra. Houve muitos tropeços, muitos erros, organizações que foram destruídas pela repressão, ideias erradas que foram sendo substituídas, até que se chegasse em uma organização política da envergadura do Partido Bolchevique.

Quando encontramos uma personalidade como Lênin, que é, sem dúvida nenhuma, uma das maiores personalidades políticas que o mundo já viu até hoje, ficamos até dominados por um sentimento supersticioso. De onde teria surgido uma pessoa com tal capacidade? Mas não há nada de sobrenatural. Ele é o desenvolvimento de quase cem anos de luta.

Quando Lênin começa a militar, ele tinha tido a possibilidade naquele momento de estudar todos os processos revolucionários, todas as teorias revolucionárias; em certo sentido, a Rússia havia sido um laboratório da revolução. Tudo havia sido testado. Havia sido testado o trabalho para conscientizar os camponeses, os atentados terroristas dos populistas organizados contra dois czares. Havia sido testado o trabalho clandestino, o trabalho de imprensa legal, tudo já havia sido feito em algum sentido. Lênin é o homem que irá recolher de maneira mais consciente, de maneira mais coerente, essa experiência extremamente vagarosa, extremamente longa da Revolução Russa na sua luta para construir o Partido Bolchevique. Sem a formação desse partido, logicamente, não seria possível a Revolução Russa.

Só quando a classe operária russa, através desse processo de evolução, se coloca sob a liderança desse partido, é que ela se unifica como classe, é que ela se transforma em um ator unitário e consciente da Revolução.

Esse é um aspecto chave do problema, que é importante discutir, principalmente hoje, no Brasil, quando a crise política dos últimos anos, com a esquerda, principalmente com o PT e com o stalinismo também, deu lugar a uma ampla difusão de ideias anarquistas as mais variadas possíveis. No centro dessas ideias anarquistas existe a rejeição à constituição de um partido político.

Essa ideia é equivalente à ideia de que a pessoa vai participar de um tiroteio sem um revólver. É uma ideia sem sentido, porque a revolução proletária necessita da agregação de toda a classe operária detrás de um programa único de classe e isso não pode ser feito espontaneamente; só pode ser feito por meio de um determinado partido político operário, revolucionário, socialista. É uma tarefa central no mundo hoje e é a grande contradição que o mundo enfrenta.

O próprio Leon Trótski, muitos anos depois da Revolução Russa, coloca no programa de transição a ideia de que a contradição fundamental da época atual é a contradição entre as premissas objetivas da revolução, que estão tão maduras que já começam até a apodrecer, segundo ele diz, e a imaturidade subjetiva da classe operária, que se expressa na falta de um partido político.

O grande segredo da revolução é a constituição desse partido político e esse partido político, conforme estamos vendo, que foi tão fundamental na Revolução Russa, não é um aglomerado circunstancial, casual, ocasional de pessoas, mas é o amadurecimento de uma determinada ideia revolucionária; é o agrupamento da classe operária detrás de seu próprio programa de classe. É a evolução da classe operária para ter consciência de seus objetivos sociais e políticos. É um processo social complexo, por isso é que não ocorre também tão facilmente.

Não basta que nós proclamemos a necessidade de um partido operário e agrupemos pessoas para que esse partido operário exista. O partido precisa ter um programa que se torne o programa objetivo, prático da classe operária em luta. Sem esse processo não é possível fazer a revolução. Nós poderíamos dizer inclusive que esse processo é a própria essência do mecanismo revolucionário. Nós podemos dizer que dadas as condições materiais para a revolução, a revolução consiste no processo de agrupamento da classe operária detrás de um programa que expressa a evolução da sua consciência em um sentido revolucionário. Quando acontece essa evolução, nós temos a revolução. A revolução é a própria classe operária, é o processo de desenvolvimento da classe operária. Isto em um aspecto muito essencial.

A primeira questão que surge da Revolução Russa é justamente o problema do partido. O Partido Bolchevique desempenhou um papel fundamental. Eu gostaria de chamar a atenção para algumas etapas e para alguns mecanismos que são peculiares justamente da relação entre o partido e a massa de trabalhadores.

Quando a Revolução Russa acontece, Lênin, que está no exílio, manda um telegrama para os militantes bolcheviques que chegaram na capital, no qual ele diz: “Nenhuma confiança no governo provisório, temos que lutar pelo poder dos sovietes” etc. e traça uma linha que, vendo as coisas retrospectivamente, parece óbvia, mas na realidade não era, porque ninguém defendia aquele programa naquele momento. É na realidade uma mudança, se não de 180º, de 90º na política do partido. E ela só vai ser adotada através de uma crise no partido bolchevique. O problema é que se ela não fosse adotada, o que aconteceria? Qual era o panorama da revolução dentro do qual o partido atuava?

Toda a esquerda russa, toda ela praticamente, era favorável a defender o poder da burguesia, o que seria mais ou menos a política do PT, mas em uma situação revolucionária. O único partido que desafiou esse senso comum da época foi o Partido Bolchevique. Como ele desafiou esse senso comum, através de uma luta que vai de fevereiro até outubro, ele serviu como uma espécie de ponto de aglutinação das massas que se desenvolviam rapidamente no sentido de rejeitar o acordo com a burguesia, ou das massas que, já tendo rejeitado essa aliança com a burguesia, precisavam se organizar de uma tal maneira que permitisse que essa compreensão da rejeição da política da burguesia se transformasse em uma política prática e ativa para a tomada do poder. Essa política foi organizada pelo Partido Bolchevique. Quem conduziu em todos os momentos o desenvolvimento dessa luta, clareando o caminho, especificando, fazendo propostas que permitiam um avanço, foi o Partido Bolchevique. Sem esse partido, a revolução seria estrangulada por uma série de mecanismos demagogicamente democráticos ou pseudodemocráticos. Ou, também, como esteve para acontecer, por um golpe de Estado. Quem bloqueou todas essas variantes e colocou a revolução no sentido da tomada do poder foi o Partido Bolchevique. O partido político cumpre um papel fundamental e essa é uma das grandes lições da Revolução Russa.

Trótski, na História da Revolução Russa, analisa justamente esse papel do Partido Bolchevique. Ele diz que a revolução é como uma caldeira a vapor. As massas revolucionárias seriam uma fonte de energia, de força extraordinariamente grande como é o vapor, mas o vapor não é uma força em si. Ele precisa ser canalizado, para que se crie aquela pressão, e depois nós precisamos de determinados mecanismos que vão soltando a pressão em um sentido funcional para que ela possa ser usada para movimentar outra parte daquela engrenagem. Sem essa válvula de pressão o vapor não é uma força. Ele então se dispersa. Então ele fala: “o Partido operário é essa válvula de pressão”. Mas onde essa força se concentra e adquire um determinado direcionamento prático? Através do partido político. Ou seja, não dá para a classe operária, sem um partido, organizar essa força, é preciso que isso seja canalizado para um mecanismo que tenha uma válvula, que regula e que dá vazão a essa pressão e que a torna um fator efetivo no funcionamento daquele mecanismo. Essa é uma questão chave.

Uma segunda questão muito importante é o problema da independência política da classe operária. No Brasil nós vivemos esse problema de forma intensa. Toda a política brasileira nos últimos 30 ou 35 anos gira em torno do problema da independência da classe operária diante da burguesia. A classe operária, mesmo que não saiba, e também a juventude, esbarram nesse problema de que as organizações políticas brasileiras atrelaram todo mundo à burguesia e ninguém sabe como sair. Foi o que aconteceu recentemente nas eleições em São Paulo. A maioria da população gostaria de derrubar o governo Serra, se eles soubessem como, se tivessem os meios, derrubariam o governo até mesmo por fora das eleições. Mas isso ainda não está claro como se faz, como se chega nesse resultado, então a população foi para as eleições. Nas eleições se apresentaram vários partidos e esses partidos criaram um mecanismo no qual finalmente a população foi sendo envolvida, como se fosse um teatro onde se movimentam os cenários, e foi por fim colocada a seguinte questão: Serra, Haddad ou voto nulo? Serra teve uma votação insignificante, votação essa que em grande medida é produto do clientelismo da prefeitura e do apoio de um setor ultraminoritário e conservador da burguesia e da pequena-burguesia da cidade. A maioria das pessoas, inclusive que não gostam do PT, votou no PT porque não queria que Serra ganhasse e uma outra parcela, que não tolerava mais votar no PT, votou nulo. Mas o fato é que a população teve que trocar Serra, um representante da burguesia, por Haddad, que é um outro representante da burguesia. É como se nós tivéssemos entrado num buraco e saíssemos no mesmo lugar por onde entramos.

Tudo bem que a vitória de Haddad tem um significado um pouco diferente, porque finalmente quem votou nele é porque não aguentava mais a direita, o PSDB. Quem votou nele queria se livrar de José Serra e, portanto, não vai aceitar que o Haddad imponha a mesma política do PSDB, o que vai gerar uma enorme crise. Mas, enfim, do ponto de vista político é isso. Os trabalhadores, os intelectuais, a juventude, criaram um partido de trabalhadores que acaba sendo também um partido da burguesia. É como se tudo que você fizesse caísse no mesmo lugar.

Por exemplo, eu cheguei a participar da fundação do PT. Em Diadema, nós passávamos de porta em porta para legalizar o PT. Naquele momento, o que a população queria era se livrar do Arena e do MDB, por isso íamos de porta em porta para apresentar o PT e filiar pessoas. Agora, em 2012, perguntamos: quem é o vice de Dilma, do PT? É o PMDB, ou seja, é o mesmo partido de que nós queríamos nos livrar. Esse problema é chave: como constituir um partido que seja efetivamente o partido de todas aquelas pessoas que decidiram se opor a todos os partidos e políticos da burguesia?

Outro exemplo é a criação do Psol, que foi realizada depois da decepção com a subida do PT ao governo. Mas o que aconteceu? O Psol fez exatamente a mesma política. Nas últimas eleições, fizeram aliança com o DEM, o PP, o PSDB, PSC, PT, PCdoB, produzem uma enorme confusão política. Isso não significa que seja um defeito moral de ninguém, ou de nenhuma organização política, mas o fato é que esse é um processo chave na transformação social. Essa transformação só poderá ocorrer quando os trabalhadores, a juventude de esquerda, chegarem à conclusão, através de sua própria experiência, de que eles não devem ficar a reboque da burguesia. Mais ainda – pois essa conclusão muitos deles já tiraram –, quando chegarem à conclusão de como é que se faz para não ficar a reboque da burguesia, porque esse exemplo do PT também é um exemplo de pessoas que decidiram não ficar a reboque da burguesia mas acabaram ficando de qualquer maneira. Então é preciso que a classe operária evolua através de sua própria experiência, massivamente, para se separar totalmente da burguesia, entendendo como é que se faz para se separar totalmente da burguesia. Só assim teremos um desenvolvimento verdadeiramente revolucionário.

Na Revolução Russa, esse processo, que no Brasil já dura mais de 35 anos, acontece como se fosse um filme em alta velocidade. Isso porque uma característica da revolução é que ela concentra os problemas de uma maneira extraordinária. Aquilo que demora 10 anos para acontecer em tempos não revolucionários, na revolução acontece em uma semana. A experiência das massas é muito mais aguda porque as contradições são muito mais agudas.

Então os trabalhadores russos que fazem a revolução, pelas coordenadas políticas que se colocam na revolução e pela ação do Partido Bolchevique, passam a entender de que lado está a burguesia e de que lado está a classe operária, e o que é preciso fazer para se livrar da burguesia.

O Partido Bolchevique compreende as contradições da política burguesa logo num primeiro momento. Lênin fala que a primeira revolução russa, em fevereiro, é uma revolução na qual as expectativas estão confusas porque é feita pela classe operária e pela burguesia para derrubar o Czar. Porém, os objetivos da burguesia e dos trabalhadores são diferentes e eles são contraditórios uns com os outros, e por isso Lênin conclui que é inevitável uma segunda revolução.

Lênin identifica quais são as contradições. Uma delas é a continuidade da guerra, que interessa à burguesia e não à classe operária. Há o problema do desabastecimento, que se tornava cada vez mais grave na Rússia, que estava lançando a classe operária à miséria. Por fim, havia a questão da terra dos camponeses. Os bolcheviques lançam então um programa básico com as palavras de ordem de “Paz, Pão e Terra”. Esse programa expressa a linha de clivagem, de ruptura, entre a burguesia e o proletariado, e os bolcheviques fazem propaganda nessa linha.

Enquanto os partidos da esquerda pequeno-burguesa procuram levar o proletariado a apoiar a burguesia, a guerra, e procuram confundir os operários com uma série de ideias enganosas, os bolcheviques denunciam a todo o tempo esses golpes.

Na medida em que são feitas manobras para iludir o proletariado, os bolcheviques vão intervir e esclarecer que de um lado está a burguesia e de outro a classe operária, e que esse é o aspecto chave da revolução.

Em um dado momento, eles lançam uma palavra de ordem que foi um desafio para os partidos da esquerda pequeno-burguesa, para que eles assumissem todo o poder político e expulsassem a burguesia do poder. Vejam que os bolcheviques não pedem para si o poder num primeiro momento; eles propõem o poder para os partidos da esquerda pequeno-burguesa, que na Rússia seriam o PT, o Psol etc. No entanto, esses partidos rejeitam romper com a burguesia e vão caindo em descrédito com as massas. As massas observam a conduta desses grupos em não querer romper, e começa a crescer a deterioração da autoridade desses partidos sobre as massas.

Em um determinado momento, as massas saem às ruas para obrigar essas lideranças a romper, porém percebem que isso não iria acontecer. Há um enfrentamento e então as massas percebem que é necessário romper também com esses partidos.

No livro do John Reed, um jornalista norte-americano que também era comunista, esse problema está muito bem retratado de uma maneira simples. Em dado momento ele descreve uma cena entre um operário, um camponês, pessoas simples da Guarda Vermelha, que estão parados em frente a um prédio, quando chega um estudante pequeno-burguês, que insulta os operários e afirma que eles não sabem nada, que são ignorantes etc. Um dos trabalhadores, embora intimidado, reconhecendo que o estudante é uma pessoa mais instruída diz: “Uma coisa nós sabemos, de um lado está a classe operária, do outro a burguesia, e quem não está com um, está com o outro”. Então o estudante começa a ficar irritado e acusa os soldados de terem participado da repressão contra uma determinada manifestação há vários anos. Os operários então reconhecem novamente a autoridade do estudante, mas voltam a afirmar: “Uma coisa nós sabemos, de um lado está a classe operária do outro a burguesia, e quem não está com um está com o outro”. Ou seja, esse fato simbólico, embora seja real, demonstra que as massas haviam compreendido, mesmo entre os setores mais pobres, que havia uma verdadeira guerra civil entre a classe operária e a burguesia, e esse era um problema chave. Para eles, quem não estava com o proletariado estava com a burguesia e nada mais.

Por aí dá para termos uma ideia de como se processa a compreensão. Não é que aqueles dois milicianos da Guarda Vermelha tinham uma consciência profunda dos problemas da luta social, mas eles tinham uma compreensão prática, concreta do que estava acontecendo, que é o que a maioria dos trabalhadores tem dos problemas, dos interesses em jogo etc. Eles não são cientistas sociais, nem especialistas em política. Esse problema foi chave. A Revolução de Outubro aconteceu quando toda a classe operária e o campesinato começam a romper com a burguesia depois de uma campanha gigantesca dos bolcheviques. Esses são problemas fundamentais de todo o desenvolvimento da revolução e nós podemos dizer ainda que esse é o problema mais central também de seu desenvolvimento prévio.

Finalmente, há uma terceira questão, que é o problema da insurreição. Hoje em dia, a Revolução Russa é tratada como um fenômeno dado. Isso pode induzir a uma incompreensão do que acontecia na época. Naquele momento, a ideia de que um partido poderia conduzir à tomada do poder organizando conscientemente uma insurreição era uma ideia que não passava pela cabeça de ninguém.

Os grandes dirigentes da socialdemocracia da época acusaram os bolcheviques, depois da insurreição, de “blanquismo”, que foi uma corrente política francesa, de um grande revolucionário chamado Blanqui, que era um especialista da luta de barricada e da insurreição. Ele participou de várias insurreições em Paris, antes e depois da revolução de 1830. Blanqui ficou preso dezenas de anos pela burguesia francesa e mesmo quando os revolucionários da Comuna de Paris propuseram trocar ele por mais de 200 prisioneiros políticos, incluindo o bispo da cidade, a burguesia negou a proposta. O blanquismo, portanto, era mal visto porque subentendia-se que era uma tática equivocada. A socialdemocracia, ao contrário, estava há muito tempo comprometida pela política eleitoral, esquecendo o problema da revolução. Para eles, a revolução era um movimento geral das massas, um movimento de opinião, mas não um movimento de força.

Os bolcheviques foram os únicos que levantaram esse problema, de que somente uma revolução, com a utilização da força, com a tomada do poder, poderia conduzir a classe operária à vitória. Isso vai se tornar um divisor de águas entre aqueles que apoiam a tomada do poder pela força, dos que acham que não há outro caminho; e de outros que defendem a ideia da democracia, que em última instância significa que ninguém nunca tomará o poder.

Em certo sentido, a esquerda brasileira se apoia na ideia de que tem que haver eleições. Não há a ideia de que as eleições são a forma natural de perpetuação do domínio da burguesia sobre a sociedade e que para a sociedade se liberte, constitua um governo operário, passe para o socialismo, é preciso uma revolução. Não só uma revolução espontânea, mas efetivamente a tomada consciente do poder pelos revolucionários organizados. Isso implica em uma grande distinção dos métodos de ação.

Os revolucionários podem participar das eleições. Os revolucionários podem e devem participar da organização de sindicatos, associações e outros. Mas para quê? Qual o sentido dessa ação? O sentido dessa ação tem de ser organizar a classe operária para que, no momento em que a situação transbordar, no momento em que se colocar o problema da revolução, exista uma força capaz de levar a classe operária efetivamente ao poder. Sem o poder político da classe operária, essa seria a quarta conclusão, não é possível nenhuma transformação social efetiva.

No Brasil, por exemplo, hoje em dia muitos acham que com o governo do PT, do Psol, ou com um governo qualquer, é possível fazer transformações sociais. Talvez não todas, talvez algumas ficassem de fora, mas que daria para transformar bastante coisa. Isso é uma ilusão, uma fantasia. Não é possível transformar nada, é preciso desmantelar o mecanismo político que mantém a exploração social para que a exploração social possa ser atacada. Se alguém for atacar a exploração social sem desmantelar esse mecanismo político, vai se defrontar com uma barreira insuperável. Toda tentativa de fazer transformações por dentro desse mecanismo político está fadada ao mais completo fracasso. Nós temos aí três mandatos do PT para ver. Não foi feito nada. Se conversarmos com alguém do PT, a única coisa que ele dirá é que distribuíram o Bolsa Família. Menos do que isso também, seria demais. Até a ONU é a favor da Bolsa Família. A ONU é dirigida pelo imperialismo, pelos bancos internacionais. Se um governo de esquerda não é a favor de dar comida para quem está passando fome, do que ele seria a favor? Já quanto à reforma agrária, que significaria uma modificação real na relação real entre o capital e o trabalho, nada. Uma modificação real na situação da mulher, do negro, do índio, de todos os setores oprimidos da sociedade, nada. Uma transformação, por mínima que fosse, no sistema educacional, que está totalmente falido em todas as esferas, também não acontece. Não há nenhum projeto nesse sentido. Desenvolveram até o paroxismo o ensino pago, que é um grande ônus para a população. Esse é um exemplo prático que os brasileiros estão experimentando.

Na Revolução Russa, a população fez uma experiência com um governo pseudodemocrático rapidamente, porque as questões estavam colocadas de uma maneira muito acesa. Aqui no Brasil, não. Aqui as coisas vão se desenvolvendo lentamente.

Alguém poderia argumentar: “será que tal medida não representa uma mudança?”. No final do processo veremos que não só a situação não melhorou em nada, como se deteriorou, igual aconteceu no governo Sarney, Collor, FHC e segue ladeira abaixo.



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Revolução Russa: mitos, erros e atualidade (1)

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Mulheres num batalhão formado para defender o país da invasão por potências estrangeiras, em 1922
Num livreto didático — porém instigante e não-convencional — o significado histórico de Outubro de 1917, os descaminhos do socialismo primitivo e uma aposta: superar a ditadura dos mercados é mais necessário que nunca
Por Eduardo Mancuso

MAIS

Esta é a primeira de três partes de A Revolução Russa de Outubro de 1917, livro recém-lançado por Eduardo Mancuso. Historiador, colaborador editorial de Outras Palavras, ele soma, à militância de mais de trinta anos pelo socialismo democrático, a capacidade de refletir sobre esta luta, seus avanços e seus erros. Breve e pedagógico, o texto não cede, porém, às simplificações e dogmatismos. É uma provocação útil, tanto aos que querem começar a estudar a experiência soviética quanto a quem deseja rever as polêmicas que a marcaram

Prefácio
Este pequeno ensaio sobre a Revolução de Outubro, no ano de seu centenário, busca resgatar a atualidade da utopia de um evento fundador do século 20 (assim como a Revolução Francesa marcou o início da modernidade), homenageando um grande mestre do marxismo revolucionário, Ernest Mandel, apoiando-se em seu brilhante ensaio critico, escrito no início dos anos 1990, Octubre de 1917: Golpe de Estado o revolución social. La legitimidad de la Revolución Rusa[1]nunca editado em português.

Nesse balanço político engajado, escrito no período da dissolução da União Soviética, Mandel, o principal intérprete de Trotsky e um dos grandes economistas marxistas do pós-guerra, combate com argumentos sólidos a grande mistificação anticomunista sobre a natureza da Revolução de Outubro. Ao mesmo tempo que afirma categoricamente a profunda legitimidade histórica da revolução russa e defende a orientação de conjunto seguida pelos bolcheviques, Mandel realiza, com sua reconhecida erudição, um balanço lúcido e implacável dos principais erros cometidos pelos dirigentes revolucionários.
O mito da Revolução Russa como um golpe de Estado minoritário, dirigido por um mestre da manobra política, Lenin, executado por uma seita de revolucionários profissionais, expressa uma narrativa persistentemente alimentada por um amplo leque de forças que vão do conservadorismo ao liberalismo, da social-democracia a correntes pós-modernas, chegando até ao governo russo na atualidade, constrangido com o centenário de Outubro.
Ao contrário dessa visão reducionista e absolutamente ideológica, a Revolução de Outubro foi o ponto culminante de um dos mais profundos movimentos de massas da história, marcou o início do século 20 e inspirou com o seu programa as insurreições europeias deflagradas pela barbárie imperialista da Primeira Guerra Mundial. Apenas quatro décadas após Marx e Engels escreverem no prefácio da edição russa do Manifesto Comunista (1882) que, “se a revolução russa tornar-se o sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra”[2], essa possibilidade histórica concretizou-se. Ela acabou frustrada, é verdade, uma revolução traída. Porém, a atualidade dessa utopia nos interpela ainda hoje, em sua mensagem em defesa da unidade e da emancipação da classe trabalhadora, da solidariedade dos povos em busca de “paz, pão e terra”. Em pleno século 21, em seu centenário, Outubro de 1917 nos faz lembrar da alternativa de Rosa Luxemburgo sobre a crise de civilização capitalista: socialismo ou barbárie.
Introdução
171018-MancusoCapa
O regime czarista foi derrubado em fevereiro de 1917 (pelo antigo calendário russo as revoluções de março e novembro iniciaram duas semanas antes e assim ficaram conhecidas), alguns meses antes da Revolução de Outubro. Foi então que nasceram os Sovietes – os conselhos de operários, camponeses e soldados – resgatando a experiência histórica de São Petersburgo (antiga Petrogrado) na revolução derrotada de 1905. No início do processo, os bolcheviques não tinham uma presença majoritária nos Sovietes. Eram outras forças políticas, como os mencheviques e os socialistas-revolucionários (SR), herdeiros do populismo russo, que detinham a maioria da representação dos conselhos. Estes partidos moderados apoiavam os burgueses liberais e o seu principal partido, cadete (KD), que constituíram o Governo Provisório, após a queda do czar Nicolau Romanov.
Esses partidos e correntes políticas revelaram-se incapazes de resolver o conjunto dos problemas candentes que assolavam o país, como a continuidade mortífera da guerra, a fome, a carestia, a miséria da classe operária e a demanda dos camponeses por reforma agrária. Esta incapacidade política e as crises sucessivas do Governo Provisório explicam a progressiva e rápida radicalização das massas do campo e das cidades, o crescimento da influência bolchevique e a aparição de uma nova situação revolucionária no outono.
No momento da primeira revolução, em fevereiro de 1917, as mulheres trabalhadoras da indústria têxtil, os camponeses, os operários e as nacionalidades oprimidas do império russo deram um grito de basta e derrubaram o czarismo. Pediam paz, terra, jornada de oito horas, direito à autodeterminação. Porém, o Governo Provisório tergiversou, adiou a solução dessas questões dilacerantes para uma Assembleia Constituinte, que tinha a sua convocação e eleição sucessivamente postergada. O paradoxo da Revolução de Fevereiro foi que, embora tenha varrido o czarismo, substituiu-o por um governo de liberais não eleitos que estavam horrorizados com a própria revolução que os havia colocado no poder. Nessas condições, não surpreende que as massas tenham buscado resolver elas mesmas seus problemas vitais e reconhecido, na política dos bolcheviques e no poder dos Sovietes, os instrumentos da revolução.
O mito do golpe de Estado
As fontes históricas não deixam dúvida alguma quanto à representatividade dos bolcheviques em outubro de 1917. Sukhanov, membro da corrente moderada SR, assinala o papel dos bolcheviques no movimento revolucionário:
“Resulta totalmente absurdo falar de uma conspiração militar em lugar de uma insurreição nacional, quando o partido era seguido pela grande maioria do povo e quando, de fato, já havia conquistado o poder real e a autoridade.”[3]
Marc Ferro, eminente historiador e crítico dos bolcheviques afirma:
“[…] em primeiro lugar, a bolchevização foi o efeito da radicalização das massas e a expressão da vontade democrática […] Em grande medida, a radicalização das massas se explica pela ineficácia da política governamental (com participação socialista desde maio) […] Os trabalhadores pediam que lhes concedessem condições de vida menos inumanas. Foi a negativa, brutal e astuta, dos possuidores em acatar esta demanda o que levou a ocupação de fábricas, ao sequestro de patrões, e em seguida, depois de Outubro, a vingança contra os burgueses.”[4]
Mandel também resgata as palavras de Dan, um dos principais dirigentes mencheviques nas vésperas de Outubro, reconhecendo que as massas:
“[…] cada vez com mais frequência começaram a expressar seu descontentamento e sua impaciência em movimentos impetuosos, e terminaram […] por voltar-se para o comunismo […]. As greves se sucederam. Os operários buscaram responder ao rápido aumento do custo de vida através de incrementos salariais. Porém, todos os seus esforços fracassaram em consequência da contínua desvalorização da moeda. Os comunistas lançaram em suas fileiras a consigna de “controle operário”, e lhes aconselharam a tomar em suas mãos a direção das empresas a fim de impedir a “sabotagem” dos capitalistas. Por outro lado, os camponeses começaram a apoderar-se das propriedades rurais, a expulsar os latifundiários e a pôr fogo em suas casas de campo ante o temor de que as propriedades lhe escapassem das mãos desse momento até a convocatória da Assembleia Constituinte.”[5]
A Revolução de Outubro realizou-se sob a palavra de ordem de “Todo o poder aos Sovietes”, os conselhos de operários, soldados e camponeses. Mandel cita o historiador Beryl Williams, que resume o processo que conduziu a revolução nestes termos:
“Mais que nos programas dos partidos ou na Assembleia Constituinte, era no poder dos Sovietes onde as massas viam a solução dos seus problemas. Somente os bolcheviques estavam realmente identificados com este poder soviético […]. [Seu] partido se encontrava, então, com possibilidades de elevar-se sobre a onda popular até a tomada do poder.”[6]
Mandel recorda que no decisivo segundo congresso dos Sovietes, às portas da revolução de Outubro, os partidários da orientação “Todo o poder aos Sovietes” obtiveram quase 70% dos mandatos. Ao examinar a atitude popular com a dissolução da Assembleia Constituinte por parte do governo soviético, em janeiro de 1918, ele cita as palavras do historiador Anweiler:
“[…] nas fileiras do povo eram raros os protestos contra as medidas coercitivas dos bolcheviques, e isto não tinha como causa única o terrorismo intelectual e físico, relativamente “suave” dessa época. O fato de que os bolcheviques se tenham antecipado, em muito, às decisões da Constituinte sobre questões tão vitais como as da paz e da terra, pesou não menos decisivamente na balança […]. As massas operárias e camponesas se mostravam […] mais inclinadas a dar o seu assentimento às medidas concretas dos novos donos […]. Apesar da deficiência dos Sovietes, tanto em questões organizativas como, frequentemente, em matéria de representação, as massas os consideravam como “seus” órgãos”.[7]

O mito da utopia socialista
A segunda falsificação histórica, segundo Mandel, é a de que os bolcheviques teriam tomado o poder de forma golpista com a intenção de criar na Rússia, de imediato, uma sociedade socialista. Na realidade, a tomada do poder pelos Sovietes, sob a direção política bolchevique, tinha como meta objetivos muito concretos: deter a guerra imediatamente, distribuir a terra aos camponeses, assegurar o direito à autodeterminação das nacionalidades oprimidas, evitar o esmagamento de Petrogrado, o coração da revolução, que o primeiro-ministro Kerensky queria entregar ao exército alemão, acabar com a sabotagem da economia por parte da burguesia, estabelecer o controle operário sobre a produção e impedir a vitória da contrarrevolução monárquica.
Os bolcheviques não esperavam realizar “a utopia socialista” em “um só país”. Na realidade, rechaçavam tal ideia. Lenin nunca escondeu às massas que, para ele, a conquista do poder na Rússia tinha a função histórica de estimular a revolução internacional, principalmente a revolução alemã, beneficiando-se do fato de que a relação de forças no país era mais favorável ao proletariado do que a de qualquer outro lugar da Europa.
Lenin sabia que uma sociedade socialista plenamente desenvolvida, no sentido marxista de uma sociedade sem classes, só poderia conhecer a luz do dia depois da vitória da revolução internacional. E assim repetiu, em janeiro de 1918, diante do terceiro congresso dos Sovietes:
“Não tenho ilusões quanto ao fato de que apenas começamos o período de transição ao socialismo, de que não chegamos ao socialismo […] Estamos longe inclusive de haver terminado o período de transição do capitalismo ao socialismo. Jamais nos deixamos enganar pela esperança de que poderíamos terminá-lo sem a ajuda do proletariado internacional.”[8]
O mito do partido-seita
A terceira falsificação histórica é a de que a “intentona golpista” de outubro de 1917 foi perpetrada por uma seita de revolucionários profissionais extremamente centralizada, fanática e manipulada por Lenin, “ávido de poder absoluto”. Na realidade, entre fevereiro e outubro de 1917, o partido bolchevique se converteu em um partido de massas, aglutinando a vanguarda real do proletariado russo. Seu número de revolucionários profissionais (permanentes) era extremamente reduzido (700 de um total aproximado de 250 mil membros). Segundo Mandel, até conquistar o poder, o partido bolchevique foi o partido de massas menos burocratizado que já existiu na história. Funcionava de maneira extremamente democrática: os debates e diferenças de opinião eram numerosos e, de maneira geral, expressavam-se publicamente. Esta tradição manteve-se viva até 1921, durante o X Congresso do Partido Comunista (bolchevique), quando foi tomada a decisão, profundamente equivocada e com trágicas repercussões, de proibir as frações, tendências e grupos no seio do partido.
Se a Revolução de Outubro não foi um golpe de estado, tampouco foi um levante de massas espontâneo, como foi Fevereiro. O processo foi uma insurreição metodicamente preparada e executada pelos bolcheviques e seus aliados nos Sovietes (os anarquistas e os socialistas-revolucionários de esquerda) com amplo apoio popular. Não se tratou de uma insurreição secreta e minoritária. Foi o resultado de uma nova legitimidade sustentada por instrumentos de duplo poder construídos pela grande maioria dos trabalhadores e soldados e por uma boa parte dos camponeses. A legitimidade dos Sovietes e dos conselhos de fábrica foi conquistada na disputa política contra as correntes reformistas moderadas, o Governo Provisório, o Estado-Maior, a burguesia e os latifundiários. Desta maneira, nas empresas os operários reconheciam cada vez mais a autoridade dos comitês de fábrica em detrimento dos patrões. E graças a agitação e a organização bolchevique dirigida por Trotsky, todos os regimentos da guarnição de Petrogrado decidiram em assembleias públicas não reconhecer ordens que não fossem do Soviete.
Portanto, o mito da revolução russa como um golpe de Estado executado por uma seita política, constitui uma falsificação histórica flagrante.
O mito do regime totalitário
Há um quarto mito na condenação à Revolução de Outubro, que se baseia na ideia de que a “intentona golpista” bolchevique haveria impedido a institucionalização e a consolidação da democracia, após a queda do czarismo, e implantado um “regime totalitário” na Rússia. Trata-se, segundo Mandel, de mais uma falsificação histórica: um regime totalitário só vai implantar-se no país com a consolidação da ditadura stalinista nos anos 1930, justamente após a destruição do legado revolucionário de Lenin, dos Sovietes e do partido bolchevique.
Na realidade, a polarização das forças sociais e políticas havia chegado ao paroxismo na Rússia, entre fevereiro e outubro de 1917. Não havia nenhum espaço possível para uma experiência de democracia burguesa institucionalizar-se. Seja por razões sociais (instabilidade política extrema, ausência de classes médias), seja por razões culturais (ausência de instituições estatais, total falta de tradição democrática no império russo).
A partir de julho, com a radicalização das massas populares e de suas demandas, os setores reacionários das elites e do exército adotaram um curso violentamente repressivo e abertamente contrarrevolucionário. A prisão de lideranças políticas de esquerda pelo regime e o golpe de Estado de Kornilov em agosto, refletem o endurecimento da situação. A frustração dessas iniciativas acentuou a sede de vingança e o ódio de classe dos possuidores. Este ódio de classe era tão profundo que no espaço de poucos meses a burguesia, a nobreza e os monarquistas, antes tão “patrióticos” em relação à guerra, tornaram-se germanófilos e passaram a conspirar e tecer esperanças na chegada das tropas alemãs a Petrogrado, para assim esmagar o foco revolucionário na capital (repetindo, meio século depois, o mesmo comportamento do governo francês sobre a Comuna de Paris).
Os próprios dirigentes mencheviques reconheceram que, após a tentativa de golpe de Estado do general Kornilov, apoiado pelos setores mais reacionários, o que estava em jogo já não era a estabilização da democracia, mas a contrarrevolução monarquista:
“Depois de haver avaliado a relação de forças real, [o Comitê Central dos mencheviques] chegou à conclusão de que – independentemente de suas intenções subjetivas – a vitória dos elementos que marchavam sobre Petrogrado obrigatoriamente haveria significado a vitória da pior das contrarrevoluções.”[9]
Portanto, a opção real não estava entre democracia burguesa ou ditadura bolchevique. Estava entre ditadura contrarrevolucionária ou o poder democrático e popular dos Sovietes. Foram os burgueses e os monarquistas, com o vacilante apoio dos partidos reformistas, que desencadearam a guerra civil imediatamente depois da Revolução de Outubro, contando para isso com o apoio de exércitos estrangeiros.
A alternativa política ao poder dos conselhos tinha um objetivo e um conteúdo social e econômico muito preciso, e não era a democracia. A partir de 1918, aonde os exércitos brancos dominaram, a violência contrarrevolucionária imperou e as conquistas populares de Outubro foram imediatamente suprimidas. Os latifundiários retomaram a posse de seus domínios, acabaram com os direitos das minorias nacionais, os Sovietes foram extintos e foram negados os direitos democráticos das massas trabalhadoras. Foi isso que derrotou os exércitos brancos, formados por cossacos e dirigidos por nobres e oficiais do antigo exército czarista, sem nenhuma capacidade de recrutar voluntários. Não podiam (e nem tentaram) conquistar ou reconstituir uma base popular para o retorno do antigo regime. Seus métodos eram o autoritarismo, a violência de classe e o terror.
Outubro de 1917: uma revolução internacionalista pela paz entre os povos
A vitória da Revolução de Outubro não pode ser entendida fora do contexto da Primeira Guerra Mundial. De todas as bandeiras políticas bolcheviques, a que defendia o fim imediato da guerra e a paz sem anexações foi a que mais apoio encontrou na população. Sobretudo os soldados russos, em sua maioria camponeses, não queriam mais uma guerra que havia causado milhões de baixas. A decomposição do exército desarmou o Governo Provisório depois das primeiras tentativas de contrarrevolução. Isto foi o que permitiu a vitória de outubro, sendo admitido por mencheviques mais lúcidos, como um de seus principais dirigentes, Dan: “a prolongação da guerra deu a vitória aos bolcheviques na revolução russa.”[10]
O primeiro discurso que Lenin pronunciou ante o Segundo Congresso dos Sovietes para apresentar a política do novo poder após ser aclamado como presidente do Conselho dos Comissários do Povo foi o informe sobre a paz.
“O Governo considera que continuar esta guerra pela repartição entre as nações fortes e ricas dos povos débeis conquistados por elas é o maior crime contra a humanidade e proclama solenemente sua resolução de assinar, sem demora, cláusulas de paz que ponham fim a esta guerra nas condições indicadas, igualmente justas para todas as nacionalidades sem exceção.”[11]
O governo soviético estendeu este princípio do direito dos povos a todas as colônias e países fora da Europa. Mandel chama a atenção de que este foi um ato revolucionário com incalculáveis repercussões históricas, que deu um impulso decisivo aos nascentes movimentos de libertação nacional em países como a Índia, China e Indonésia, assim como um apoio significativo a movimentos anti-imperialistas já importantes, como na Turquia. Uma das principais consequências desta política foi a famosa Conferência dos Povos do Oriente, realizada em Baku, Azerbaijão, em 1920. Além disso, pela primeira vez na história, o poder soviético aboliu a diplomacia secreta, publicando todos os documentos diplomáticos e todos os tratados secretos realizados pelos governos anteriores. E também decidiu imediatamente iniciar negociações de paz. Este fato foi acompanhado de um chamado aos trabalhadores dos grandes países imperialistas para que se comprometessem com o caminho da paz e do socialismo:
“Ao dirigir esta proposição de paz aos governos de todos os países beligerantes, o Governo Provisório Operário e Camponês da Rússia se dirige também, e sobretudo, aos operários conscientes das três nações mais adiantadas da humanidade e dos três Estados mais importantes que tomam parte na atual guerra: Inglaterra, França e Alemanha. Os operários destes três países prestaram os maiores serviços à causa do progresso e do socialismo, deram os magníficos exemplos do movimento cartista na Inglaterra, das revoluções de importância histórico-mundial realizadas pelo proletariado francês e, finalmente, da luta heroica contra a lei de exceção na Alemanha e do trabalho prolongado, tenaz e disciplinado para criar organizações proletárias de massas neste país, trabalho que serve de exemplo aos operários de todo o mundo. Todos estes exemplos de heroísmo proletário e de iniciativa histórica nos garantem que os operários destes países compreenderão o dever que têm hoje de livrar a humanidade dos horrores da guerra e de suas consequências, que esses operários, com sua atividade múltipla, resoluta, abnegada e enérgica, nos ajudarão a levar a feliz termo a causa da paz, e com ela, a causa da libertação das massas trabalhadoras e exploradas de toda a escravidão e de toda exploração.”[12]
Os bolcheviques concebiam a Revolução de Outubro como um meio para encerrar a guerra e acelerar o desenvolvimento da revolução socialista mundial. Como lembra Mandel, a Primeira Guerra Mundial representou o massacre de dez milhões de seres humanos, para alcançar objetivos aos quais hoje em dia ninguém reconhece legitimidade alguma. A guerra foi o primeiro de uma série de desastres que, trinta anos mais tarde, conduziram a humanidade à barbárie moderna do nazismo, de Auschwitz e Hiroshima. Os socialistas mais lúcidos previram isso antes de 1914: revolucionários como Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo, e moderados como Jaurés.
Assim, o governo dos Sovietes lutou determinadamente pela paz imediata durante as negociações de Brest-Litovsk com a Alemanha e Áustria-Hungria. E um crescente contingente de trabalhadores e soldados de todos os países envolvidos rechaçava a continuidade da guerra, o que explica o imenso eco que a posição soviética encontrou, sobretudo quando se traduziu na exemplar agitação de Trotsky na mesa de negociações. Assim, a revolução na Rússia encarnava a esperança internacionalista e humanista de defesa da paz, da liberdade e da igualdade de direitos para todos os povos.
Nesse sentido, a primeira Constituição soviética, de 1918, suprimia a distinção entre “cidadãos nacionais” e “estrangeiros”. Todas as pessoas que residiam na Rússia Soviética e que estivessem dispostas a trabalhar nesse país, imediatamente gozariam de todos os direitos políticos, incluído o direito de voto. Nunca é demais destacar o fato histórico de que foi a Revolução Comunista de 1917 a responsável pela Rússia ser um dos primeiros países a implantar o sufrágio eleitoral ou seja, o direito de voto das mulheres. Pela primeira vez na história um poder de Estado demonstrava, através de fatos e de sua prática concreta, que estava a serviço dos interesses dos povos e da classe operária internacional.
Os bolcheviques mostravam assim que permaneciam fiéis às melhores tradições do movimento socialista. Ao contrário da social-democracia alemã e dos demais partidos da II Internacional, que haviam falhado tragicamente nesse terreno, em agosto de 1914, quando seus principais dirigentes aceitaram a lógica da guerra imperialista, em clara violação a inúmeras resoluções adotadas durante sucessivos congressos socialistas. Depois desta histórica capitulação, foi a prática do novo poder soviético que estimulou o renascimento do internacionalismo socialista. Foi isso o que permitiu a criação da III Internacional Comunista, o que ajudou a desencadear um poderoso movimento de solidariedade internacional com a assediada revolução russa (e que garantiu a sua sobrevivência).
Uma tradição socialista: a revolução contra a guerra
Na verdade, como lembra Mandel, o novo poder soviético colocou em prática as resoluções da própria II Internacional. A política de resposta socialista às ameaças de guerra não se limitava a denunciar a carnificina entre os povos e conclamações para suspender o massacre. Graças aos esforços da esquerda da Internacional, então dirigida por Lenin, Martov e Rosa Luxemburgo, a resolução aprovada por unanimidade no Congresso de Stuttgart (1907) afirmava:
“No caso de guerra, [os partidos socialistas] têm o dever de intervir para detê-la rapidamente e utilizar com todas as suas forças a crise econômica e política criada pela guerra para agitar as camadas populares mais profundas e acelerar a queda da dominação capitalista.”[13]
No Congresso de Basileia, em 1913, a Internacional dirigiu uma solene (e profética) advertência:
“Que os governos saibam que sob as atuais condições da Europa e sob o estado de ânimo da classe operária, não poderiam desencadear a guerra sem perigo para eles mesmos.
Que recordem que a guerra franco-alemã provocou a explosão revolucionária da Comuna; que a guerra russo-japonesa pôs em movimento as forças revolucionárias dos povos da Rússia; que o mal-estar provocado pela escalada de gastos militares e navais dotou os conflitos sociais na Inglaterra e no continente de uma insólita agudeza e desencadeou greves formidáveis. (…)
Os trabalhadores consideram um crime jogar uns contra os outros em proveito dos capitalistas, da soberba das dinastias ou das combinações dos tratados secretos.
Se suprimindo toda a possibilidade de evolução regular, os governos empurram o proletariado europeu a deflagrar revoluções desesperadas, carregarão a responsabilidade de uma crise por eles mesmos provocada.”[14]
É certo que a maioria da social-democracia capitulou em 1914 frente à guerra e que depois fez todo o possível para impedir a revolução. Assim como é verdade que as massas se deixaram arrastar pela onda patriótica do momento. Estes fatos são incontestáveis. Porém, Mandel diz que seria reducionista concluir que os mesmos derivam inevitavelmente de uma prática cotidiana reformista (que combinava as greves econômicas com bons resultados eleitorais), refletindo a crescente integração do proletariado à sociedade e ao Estado burgueses. Afinal, houve uma mudança radical de atitude dessas mesmas massas a partir de 1917, isto é, a partir do momento em que a crise econômica e política criada pela guerra provocou efetivamente a miséria, a fome, a supressão das liberdades democráticas e a explosão de greves, inclusive políticas, previstas nas resoluções da Internacional.
Um ano após o Outubro de 1917 na Rússia, essa situação desembocou efetivamente em uma série ininterrupta de revoluções: Finlândia, Alemanha, Áustria e Hungria, criação de um poder soviético na Baviera, crise revolucionária na Itália.
Nesse período, a revolução mundial foi uma realidade concreta. O austro-marxista Julius Braunthal resumiu a situação durante a primeira reunião da Internacional Socialista no pós-guerra, realizada em Lucerna, em agosto de 1919, nos seguintes termos:
“A Europa estava em fermentação. Parecia que se estava nas vésperas de lutas decisivas entre a revolução e a contrarrevolução”.[15]
E agregou, referindo-se à recente organização da Internacional Comunista:
“Imediatamente depois de realizado o congresso de fundação da IC se deu na Europa um ascenso revolucionário que parecia confirmar o prognóstico de Lenin.”[16]
Fora da Rússia, é verdade, a onda revolucionária conheceu apenas vitórias temporárias: o estabelecimento das efêmeras Repúblicas Soviéticas da Finlândia, da Hungria, liderada por Bela Kun, e da Baviera (sul da Alemanha). A primeira fase da revolução alemã foi derrotada em janeiro de 1919, com o assassinato de Rosa Luxemburgo. A revolução austríaca foi deliberadamente freada pelo Partido Socialista, que negociou um compromisso com a burguesia. Mandel afirma que, se os socialistas austríacos tivessem tomado o poder, algo que era então perfeitamente possível, a situação na Europa teria modificando-se de uma maneira fundamental em favor da revolução, assegurando a união territorial com as Repúblicas Soviéticas da Baviera e da Hungria, situadas em ambos os lados da Áustria. Ao negar-se a tomar o poder, o socialismo austríaco interrompeu a cadeia da revolução social na Europa central e oriental.
A profunda radicalização do proletariado europeu depois da Revolução de Outubro teve, portanto, raízes próprias, não foi algo “inventado” ou “exportado” de Moscou. Esta radicalização modificou profundamente a relação de forças internacional prevalecente entre as classes. Tanto isso é verdade, que para tentar conter a onda revolucionária, com a ajuda dos partidos reformistas, a burguesia europeia teve que conceder aos trabalhadores importantes reformas pelas quais estes vinhas lutando há décadas, sobretudo a jornada de trabalho de oito horas e o sufrágio universal. Em 1920, esta mudança na relação de forças internacional salvou a Rússia Soviética de um estrangulamento militar, quando a ameaça de greve geral do movimento operário impediu ao imperialismo britânico intervir ao lado das forças contrarrevolucionárias durante a guerra russo-polaca.
Nesse sentido, Mandel avalia que as esperanças que os bolcheviques depositavam na revolução mundial não eram ilusórias, mas eram excessivas. Lenin e Trotsky reconheceram isso rapidamente. Porém, o que é incontestável, antes mesmo do fim da Primeira Guerra, é que as massas de muitos países queriam a revolução. Se não conseguiram realizar esse intento, fora da Rússia, foi graças a luta revolucionária que conquistaram avanços democráticos e sociais civilizatórios fundamentais na história do século 20.
(continua)
__________________
[1] Mandel, Ernest. Octubre de 1917: Golpe de Estado o revolución social. La legitimidad de la Revolución Rusa. Cuadernos de estudio e investigación 17/18, 1992, Amsterdam.
[2] Marx, Karl e Engels, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, RJ. Vozes, 2011.
[3] Sukhanov, N. N. The Russian revolution 1917, volume II, Oxford. 1955, pp. 5579.
[4] Ferro, M. Des soviets au communisme bureaucratique. Paris, 1980, pp. 139-140, 164.
[5] Dan, em Martov – Dan: Geschichte der russischen Sozialdemocratie. Berlim. pp. 300-301.
[6] Williams: The Russian revolution 1917-1921. Londres, 1987, pp. 38-39.
[7] Anweiler, O. Les Soviets en Russie 1905-1921. Paris, 1971, p. 231.
[8] Lenin. Informe sobre la actividad del consejo de los comisarios del pueblo, 11 de enero de 1918. Ouvres, Tomo 26. Moscú/París, p.489.
[9] Martov-Dan, op. cit. pp. 305-306.
[10] Martov-Dan, op. cit. p. 304.
[11] Lenin, Euvres. Tomo 26, p. 256.
[12] Lenin, Informe sobre la paz del 26 de octubre (Euvres, tomo 26, pp. 257-258).
[13] Longuet, J. Le mouvement socialiste international. Paris, 1931, p. 58 (colección Encyclopédie Socialiste).
[14] Ibidem pp. 80-81.
[15] Braunthal, J. Geschichte der Internationale. Vol. II, Berlín-Bonn, 1978, pp. 175.

[16] Ibidem, p. 186.

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Revolução Russa: mitos, erros e atualidade (2)

Proibição dos partidos. Requisições forçadas de trigo. Criação da polícia política. Paz desastrosa. Como os equívocos iniciais do poder soviético contribuiriam para frustrar o primeiro ensaio socialista
Por Eduardo Mancuso | Imagem: Marc Chagall, A Revolução (1937)
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Esta é a segunda de três partes de A Revolução Russa de Outubro de 1917, livro recém-lançado por Eduardo Mancuso. Historiador, colaborador editorial de Outras Palavras, ele soma, à militância de mais de trinta anos pelo socialismo democrático, a capacidade de refletir sobre esta luta, seus avanços e seus erros. Breve e pedagógico, o texto não cede, porém, às simplificações e dogmatismos. É uma provocação útil, tanto aos que querem começar a estudar a experiência soviética quanto a quem deseja rever as polêmicas que a marcaram

Clique aqui para ler a primeira parte.

Os erros políticos do bolchevismo no poder
Após enfrentar e superar os mitos anticomunistas sobre a Revolução de Outubro, é legítimo perguntar, à luz da evolução posterior da Rússia dos Sovietes em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), se políticas adotadas pelos bolcheviques depois da tomada do poder favoreceram ou não o processo de degeneração do primeiro Estado operário.
Tanto Rosa Luxemburgo como Alexandra Kolontai e Victor Serge (entre outros marxistas) tinham razão em criticar os bolcheviques pela repressão ao Krondstadt, a restrição às liberdades políticas, a proibição dos partidos operários reformistas e das próprias frações e tendências internas no Partido Comunista. Porém, há uma grande diferença, um verdadeiro salto de qualidade entre estes graves erros e a lógica empregada pelo stalinismo, que não estava baseada na extensão da revolução, mas sim na consolidação de uma elite burocrática privilegiada.
Enquanto para Lenin, Trotsky e Rosa Luxemburgo, a revolução russa era só o prelúdio de uma imprescindível revolução europeia (como haviam dito Marx e Engels algumas décadas antes), não era assim para Stalin, que considerava seriamente a possibilidade de construir o socialismo em um só país (e a subordinação de toda a revolução nacional posteror às necessidades de estabilização do regime da burocracia soviética).
Ernest Mandel considera que as deformações burocráticas iniciais dos anos 1920, e a degeneração contrarrevolucionária consolidada na década de 1930, foram causadas fundamentalmente pelas condições políticas e materiais objetivas da sociedade russa e da situação internacional. Porém, apoiando-se na crítica precursora e fraterna de Rosa Luxemburgo aos bolcheviques, assim como no balanço posterior de Victor Serge, ele reconhece que decisões e atitudes concretas tomadas pelo partido de Lenin, até a sua destruição pelo stalinismo, influenciaram decisivamente no processo de burocratização do regime, base objetiva de sua posterior metamorfose em ditadura totalitária. Coerente com sua origem trotskista-luxemburguista, Mandel vai desenvolver a análise crítica sobre os erros políticos dos primeiros anos da revolução com base nos princípios marxistas da democracia socialista e da autoemancipação da classe trabalhadora, sem nunca perder de vista o divisor de águas fundamental entre revolução e contrarrevolução, à luz do julgamento histórico sintetizado pela frase que Trotsky costumava usar: “um rio de sangue separa o bolchevismo do stalinismo”.
A proibição dos partidos soviéticos (e das frações e tendências)
Segundo Mandel, o mais grave erro político dos bolcheviques foi a proibição dos partidos soviéticos após a vitória do Exército Vermelho na guerra civil de 1918-1920. Trotsky formulou autocriticamente sobre essa questão um juízo explícito em 1936:
 “A proibição dos partidos de oposição produziu a das frações [no seio do partido bolchevique]; a proibição das frações levou a proibir o pensar de maneira diferente do que o chefe infalível. O monolitismo policialesco do partido teve por consequência a impunidade burocrática que, por sua vez, se transformou na causa de todas as variedades de desmoralização e de corrupção.”[1]
É inegável que em 1920 os operários consideravam os mencheviques como um partido soviético, já que numerosos membros desse partido foram eleitos em várias cidades, inclusive em Moscou. E isso também era verdade com relação aos anarquistas, que mantinham influência em algumas regiões entre os camponeses (como demonstram as tropas lideradas por Makhno). Sem dúvida alguma, a proibição dos partidos soviéticos e, posteriormente, das frações no seio do partido governamental (já que cada fração é um outro partido em potencial) eram entendidas por Lenin e pela maioria da direção bolchevique como medidas provisórias e extraordinárias ligadas a circunstâncias particulares, que deviam ser revertidas quando a situação objetiva permitisse. Como sabemos, a realidade foi bem diferente. Sobre esse tema, Mandel levanta outra questão, de alcance ainda mais geral: quais foram as consequências das teorias formuladas para justificar tais proibições? Ele afirma que, a longo prazo, estas justificações teóricas causaram mais dano que as medidas em si. A história do socialismo no século 20 atesta isso de forma dramática.
171018-MancusoCapa
A proibição dos partidos soviéticos pelos bolcheviques e das frações, tendências e grupos dentro do próprio partido comunista – à qual se opuseram Alexandra Kolontai, da Oposição Operária, e a Oposição Centralismo Democrático – expressa uma concepção substitucionista da construção partidária e do socialismo. Segundo essa concepção (majoritária também entre social-democratas, com notáveis exceções), a maior parte do proletariado seria pouco consciente para poder governar. Essa convicção colidia frontalmente com a experiência histórica da Comuna de Paris, teorizada por Marx e defendida pela Primeira Internacional. Na sequência, esse ponto de partida levou a conclusão de que, em lugar da classe operária realmente existente, quem devia governar e decidir era o partido. Finalmente, chegou-se a formulação de que o aparato partidário, e inclusive a sua direção ou seu “chefe infalível”, eram os instrumentos decisivos para mudar a sociedade. Stalin expressou o conteúdo essencial da teoria substitucionista de forma brutal e direta: “os quadros decidem sobre tudo”.

Mandel considera que a doutrina substitucionista do partido alimentou uma concepção verticalista, estatista, paternalista e autoritária do poder, que levou aos piores excessos e crimes do stalinismo. Nessas condições, esvazia-se o espaço democrático da classe (os Sovietes e conselhos populares) do seu componente vital, pois não se assegura o exercício direto do poder por parte do proletariado e das massas trabalhadoras. Sem o multipartidarismo real os Sovietes, como parlamento das classes trabalhadoras, não podem conhecer a democracia. Não podem escolher e eleger realmente entre diversas opções de política econômica, social, cultural etc. E na medida em que a supressão da democracia soviética toma um aspecto repressivo, esta repressão já não contempla somente a burguesia e os segmentos contrarrevolucionários, mas golpeia também a classe trabalhadora.
Uma concepção e uma orientação política dessa natureza contrapõem-se ao que foi a principal contribuição de Marx à teoria socialista da organização revolucionária: a ideia de autolibertação e auto-organização do proletariado. Como o próprio Marx escreveu nos estatutos da Primeira Internacional, a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores (e não dos sindicatos, dos partidos, dos governos ou dos Estados). A classe, enquanto sujeito histórico da revolução, não pode ser substituída pelos seus instrumentos (indispensáveis, é sempre importante assinalar) políticos e organizativos. Esses instrumentos são fundamentais, mas nunca poderão substituir a atividade consciente, a práxis real das classes trabalhadoras e das camadas assalariadas, exploradas e oprimidas. Segundo Rosa Luxemburgo, o papel emancipador da autoatividade da classe trabalhadora não é um “luxo” da democracia socialista, mas a sua condição histórica.
Mandel salienta que a ideologia substitucionista não pode ser considerada apenas um “desvio político”, e sim a expressão dos interesses materiais e sociais da burocracia operária. E por sua vez, essa ideologia substitucionista justificou politicamente e favoreceu o processo objetivo de burocratização da Revolução de Outubro.
O comunismo de guerra
A guerra civil e a intervenção das potências imperialistas contra a Rússia dos Sovietes explicam em parte as origens do denominado “comunismo de guerra”. Para Mandel, é difícil julgar até que ponto a política de requisição de trigo – que era a base do “comunismo de guerra” — por parte do poder soviético, assediado pela contrarrevolução, era inevitável durante os anos da guerra civil (1918-1920). Porém, é certo que esta política (sem dúvida, muito importante para garantir o abastecimento do Exército Vermelho) ameaçava, cada vez mais, romper a aliança operário-camponesa, que era a base fundamental do poder soviético.
Esta política levou a um retrocesso pronunciado das forças produtivas, sobretudo da produção de gêneros alimentícios, o que estava afundando cada vez mais a economia russa. Mandel menciona que a produção agrícola, essencialmente de cereais, retrocedeu 30%; o rebanho de gado, equinos e porcos retrocedeu mais de 20%, e a produção industrial, 60%. Em troca da mesma quantidade de trigo, o campesinato recebia somente o equivalente a 5% dos produtos industriais que recebia em 1917-1918. Daí o rechaço dos camponeses em vender trigo em troca de um papel-moeda que praticamente não tinha valor. E daí a necessidade do Estado requisitar o trigo e demais gêneros essenciais.
Essa situação levou a queda absoluta da produção de trigo, e se a produção de grãos baixava, havia cada vez menos trigo a requisitar. A isso seguiu-se uma tendência generalizada à especulação e ao mercado negro. Trotsky, como chefe do Exército Vermelho durante a guerra civil, comandava um exército composto, basicamente, de camponeses. Viajava através de todo o imenso país e compreendeu, antes de Lenin e dos demais dirigentes do partido, que a política de requisições havia chegado ao limite do suportável para as amplas massas rurais. Por isso, ainda em 1920, no período final da guerra civil, propôs que se adotasse uma nova política, mas isso foi rechaçado.
Segundo o juízo do historiador Roy Medvedev sobre esta questão, a tentativa de continuar a política de requisição depois de finalizada a guerra civil provocou a crise social de 1921, inclusive a deflagração do levante dos marinheiros de Krondstadt.[2]
Nesse contexto de crise aguda, Lenin propôs emergencialmente, e o partido aprovou, a chamada Nova Política Econômica (NEP, na sigla em russo), abandonando as requisições forçadas e liberando o funcionamento de mercados para a produção camponesa, visando favorecer o desenvolvimento da pequena indústria privada e, inclusive, buscar investimentos externos.
Mandel critica alguns teóricos que idealizaram a política de “comunismo de guerra”, e dirigentes bolcheviques que, fazendo da “necessidade uma lei”, teorizaram as restrições da escassez, do racionamento e, inclusive, o retorno à economia “natural”. Ele lembra que toda a tradição marxista e todo o senso comum do proletariado, historicamente, argumentam contra qualquer tipo de “comunismo da miséria”, e que na Rússia soviética esfomeada e destruída após a guerra mundial e a guerra civil, a política de “comunismo de guerra” não conseguia alimentar o país, muito menos viabilizar o retorno do crescimento industrial e agrário.
As negociações de paz
A delegação soviética nas dramáticas negociações e paz em Brest-Litovsk. De pé: Lipskiy, Stučka, Trotsky, e Karakhan Sentados, desde a esquerda: Kamenev, Ioffe e Anastasia Bitzenko
A delegação soviética nas dramáticas negociações e paz em Brest-Litovsk. De pé: Lipskiy, Stučka, Trotsky, e Karakhan Sentados, desde a esquerda: Kamenev, Ioffe e Anastasia Bitzenko
As negociações de Brest-Litovsk foram, para Mandel, outro erro grave cometido pela maioria dos dirigentes bolcheviques, com a notável exceção de Lenin, que nesse momento alcançou, talvez, o auge de sua célebre lucidez política. O atraso para concluir as negociações, fruto da profunda divisão no interior do partido bolchevique e do seu partido aliado, os “Socialistas Revolucionários” (SR) de esquerda, radicalmente contrários à paz em separado com os impérios alemão e austríaco, levou Lenin à exasperação. Essa controvérsia política estratégica obrigou Trotsky, na condição de chefe da delegação russa nas negociações com os representantes dos impérios centrais, a idas e vindas táticas, denúncias propagandistas do imperialismo e proclamações internacionalistas dirigidas aos trabalhadores europeus, tentando ganhar tempo nas tratativas de paz, apostando todas as fichas na insurreição proletária ou na derrota militar imediata do Reich alemão (frente às potências ocidentais).
Mandel salienta que havia uma diferença capital entre as condições propostas pelos impérios centrais durante a primeira fase das negociações de Brest-Litovsk, iniciadas em dezembro de 1917, e as arrancadas depois da interrupção das mesmas pelos soviéticos e a retomada da ofensiva militar pelo exército alemão. As primeiras eram duras, mas aceitáveis para uma boa parte da opinião operária e pequeno-burguesa urbana. Já aquelas impostas após a capitulação russa frente à imparável invasão alemã, foram sentidas como uma humilhação nacional e uma traição aos interesses internacionais do proletariado por parte da Rússia soviética. Implicavam o controle da Ucrânia por parte da Alemanha imperial, e a perda de boa parte do país. As reações internas foram violentas, provocando a ruptura dos SR de esquerda (inclusive o atentado contra Lenin) e estimulando as forças contrarrevolucionárias para guerra civil.
A maior parte do Comitê Central e dos quadros bolcheviques, com Bukharin à frente, rechaçaram assinar imediatamente as condições de paz colocadas na primeira fase das negociações de Brest-Litovsk, e assim como Trotsky, com sua posição intermediária (“nem guerra, nem paz”), invocaram o sentimento da maioria da população urbana (e as expectativas no levante do proletariado europeu). Porém, não era esse o sentimento da população camponesa, muito menos dos soldados de um exército russo em plena decomposição. E, sobretudo, essas posições não concluíam em nenhuma alternativa concreta, apenas em palavras de ordem abstratas, como a derrubada imediata das dinastias imperiais da Alemanha e da Áustria e a organização da “guerra revolucionária”.
O resultado da negativa em assinar imediatamente a paz após o início das negociações foi permitir ao exército alemão ocupar novos territórios, principalmente a Ucrânia, arrancando suas imensas riquezas da República Soviética. Lenin, que havia previsto esse terrível desenlace em consequência da divisão no partido, finalmente conseguiu maioria na direção (com o apoio de Trotsky), e assinou a capitulação, ainda em tempo de evitar que o exército alemão derrubasse o governo revolucionário. Mas esse erro político custou muito caro e cobrou seu preço imediatamente, facilitando as condições políticas para as forças reacionárias deflagrarem a guerra civil.
O terror vermelho e a polícia política
A questão do terror vermelho, legítimo como instrumento de sobrevivência física e de defesa da revolução, e a controversa criação da polícia política do Estado – a Tcheka -, estão estreitamente ligadas às consequências da paz de Brest-Litovsk e ao início da guerra civil. Ambas as questões, segundo Mandel, só podem ser entendidas à luz desses acontecimentos.
Lenin se esforçou para não ter que recorrer ao terror após Outubro. Apesar da atitude inicial dos bolcheviques, que não procederam a fuzilamentos e nem execuções indiscriminadas, e inclusive soltaram contrarrevolucionários presos no processo da tomada do poder, acreditando que assim “desarmavam” politicamente as forças reacionárias, isso não se mostrou realista com a evolução dos acontecimentos depois da vitória revolucionária. Os generais Krasnov, Kaledin e outros oficiais de alta patente detidos durante a insurreição de Outubro foram liberados sob a promessa de que se absteriam de toda ação antigovernamental. Porém, de imediato faltaram com a sua palavra, tomaram em armas, deflagraram o “terror branco”, causando a morte de milhares de camponeses e operários apoiadores da revolução.
Depois de sofrer o ataque e a violência dos contrarrevolucionários, o ambiente político modificou-se radicalmente, e o poder soviético reagiu rapidamente, percebendo claramente que a ameaça militar das forças da reação interna, com amplo apoio político e logístico das potências imperialistas, representava um risco real para a revolução. Segundo Mandel, até março de 1920, o número total de vítimas do terror vermelho foi avaliado oficialmente em 8.620 pessoas, enquanto alguns historiadores avaliaram em mais de 10 mil. Após a derrota dos exércitos brancos de Denikin e Kolchak, o governo soviético aboliu a pena de morte durante vários meses (até sua reintrodução durante a guerra contra a Polônia, que havia invadido o território russo).
A questão da criação da Comissão Extraordinária (Tcheka), para Mandel, é algo muito diferente da adoção de medidas concretas de defesa da revolução e da violência inevitável em uma guerra civil. A Tcheka significava a criação de uma instituição de Estado, um aparato burocrático permanente de difícil controle (como submeter a controle público uma polícia política?) que, com o tempo vai acabar por tomar o lugar da infame polícia secreta czarista (a temível Okhrana).
Os arquivos da Tcheka mostram que desde o princípio, e apesar da honestidade pessoal de Felix Dzerzhinsky, seu primeiro dirigente, a “degeneração profissional”, para usarmos as palavras de Victor Serge, estavam presentes. Membros e informantes da organização desviavam uma parte de toda fonte de riqueza tomada de especuladores ou responsáveis por “crimes econômicos” contra a sociedade. Além da dinâmica de corrupção, a dificuldade de controle político era real, como atestavam Lenin e Kamenev. Terminada a guerra civil, Kamenev propõe a reforma dos serviços de polícia e, com o apoio de Lenin, enfrenta a resistência de Dzerzhinsky e restringe a competência da Tcheka aos problemas de espionagem, aos atentados políticos e à proteção dos trens e dos armazéns. Qualquer outra atividade repressiva devia ser incumbência do Comissariado do Povo para a Justiça. Isso tudo, é claro, mudou radicalmente anos mais tarde, com o “thermidor” da revolução e Stalin no poder.
_________________
[1] Trotsky, L. La Révolution trahie. Paris, 1963, p. 75.

[2] Medvedev, R. La Révolution d’octobre. Paris, 1978, p. 210.

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O que não aprendemos com a Revolução Russa

por Mauro Luis Iasi
http://resistir.info/

"[Em alguns] processos, acontece com extraordinária frequência ser 'recordado' algo que nunca poderia ter sido 'esquecido', porque nunca foi, em ocasião alguma, notado […]
S. Freud, "Recordar, repetir e elaborar", 1914)


O centenário da Revolução Russa foi marcado, aqui e no mundo, por inúmeras celebrações, debates, publicações e outras iniciativas, o que demonstra o incrível impacto que este acontecimento teve e ainda tem sobre todos nós. Tudo isso é muito importante e configura um dado extremamente positivo nesta conjuntura de defensiva da esquerda.

Nossa reflexão aqui vai em uma direção um pouco distinta da necessária celebração. Já na abertura de sua magistral obra O Estado e a revolução Lênin nos lembra que Marx, assim como outros revolucionários, foram perseguidos em vida, que suas obras foram alvo do ódio mais feroz, da difamação e da mentira. No entanto, "depois da morte deles, tentam transformá-los em ícones inofensivos, canonizá-los, por assim dizer", tudo isso para consolo e enganação dos oprimidos, ao mesmo tempo "castrando o conteúdo da doutrina revolucionária, embotando seu gume revolucionário, vulgarizando-a." (Lênin, O Estado e a revolução , p. 27).

Creio que algo semelhante ocorre quando falamos da Revolução Russa. Ao mesmo tempo em que se ressalta seus líderes e ícones, seus símbolos e sua grandiosidade, tenta-se cerca-la de uma rígida fronteira que a circunscreveria em sua época, incapaz de qualquer universalidade que não seja abstrata. Transforma-se este episódio épico em ícone, castrando sua substância revolucionária, aviltando-o.

Sabemos que este como qualquer outro acontecimento histórico é constituído de particularidades que o identificam e caracterizam. Mas estamos convencidos de que há ensinamentos universais que nem sempre são destacados como deveriam, exatamente porque são incômodos e provocativos no interior do caminho que a esquerda brasileira escolheu trilhar. O desafio está em determinar o que há de particular e o que há de universal nessa experiência histórica.

Acreditamos que podemos indicar, resumidamente, cinco aspectos que são próprios da experiência soviética e que dificilmente se apresentariam em novos contextos históricos, são eles: a) o tsarismo e a luta pelas nacionalidades; b) uma particular estrutura agrária e a forma da luta camponesa; c) um desenvolvimento urbano e industrial peculiar com o desenvolvimento do movimento operário e revolucionário (com uma particular forma de presença do marxismo); d) a crise da II Internacional e a natureza da disputa ali travada; e) uma conjuntura marcada pelas guerras de 1904 e depois 1914.

Cada um desses aspectos mereceria uma análise aprofundada que não cabe aqui. Digamos somente que contribuíram para a singularidade da Revolução Russa, ao mesmo tempo que são a base de sua universalidade. O império tsarista formou-se no século XV, estendendo-se desde a Europa Oriental até o mar do Japão, submetendo ao seu domínio uma série de nacionalidades e povos (57% da população do império não era russa). A base servil das relações e a formação de uma aristocracia, cuja forma tsarista é a expressão, faz com que a resistência se expresse na dupla determinação da luta pela terra e pela afirmação das nacionalidades. Esta contradição se apresenta numa intensa luta camponesa, em rebeliões que culminam nas revoltas de Pugachev em 1858 e no Movimento Terra e Liberdade de Tchernichevski de 1860 que levarão à abolição da servidão em 1861. O Estado tsarista centraliza e articula esta dominação com base em uma imponente máquina militar e burocrática, apoiando-se em uma sociedade patriarcal e em uma ideologia da superioridade predestinada do povo russo e da infalibilidade do tsar e seu poder divino. O tsarismo soube modernizar-se, principalmente nos reinados de Pedro (1682-1725) e Catarina (1762-1796), criando grandes cidades e, finalmente com Alexandre II (1855-1881), iniciando um processo de industrialização associado a presença do capital imperialista.

Tanto o desenvolvimento industrial como os limites das lutas camponesas que evoluem para o chamado populismo russo dos narodiniks até o terrorismo e o anarquismo, marcará a forma política da luta de classes na velha Rússia. Por um lado, a tradição da luta camponesa desembocará na formação do movimento Socialista Revolucionário, que se forma como partido em 1901, e de outro pela entrada do marxismo através de Plekhanov, Vera Zassulitch, Martov e outros, primeiro através de círculos de estudo e, em 1883, com a formação do POSDR.

Um forte partido operário, articulado internacionalmente através da II Internacional, enraizado na classe trabalhadora concentrada nas três principais cidades do império, faz com que a Rússia acompanhe o amadurecimento do movimento e da luta operária europeia, equalizando sua situação, o que em outras condições não seria possível.

Por fim, uma conjuntura de crise do capital e de guerras, primeiro a guerra com o Japão desfechada em 1904 e que provocou uma situação revolucionária em 1905 e, depois, a primeira Grande Guerra que eclodiu em 1914. Dada a particularidade da estrutura agrária, responsável por 45,3% da economia tsarista e 37% de todo cereal consumido da Europa), uma produção agrícola de baixa produtividade unitária que alcançava seu volume pela dimensão de seu conjunto, a guerra produz impactos significativos na queda da superfície plantada, e por conseguinte, no preço dos gêneros de primeira necessidade. A convocação massiva de camponeses não impacta somente na produtividade no campo, mas muda a composição das famílias fazendo com que as mulheres, submetidas à secular opressão, possam emergir no terreno fértil da luta de classes. A crise se expressa, também, no agudizar das contradições internas do bloco dominante, fazendo emergir contradições no seio da aristocracia e da recente burguesia que cobram mais espaço político no extremamente centralizado poder autocrático do Tsar.

Não podemos esperar que nenhum destes aspectos particulares possam se apresentar além das circunstâncias específicas que os produziram historicamente, assim como a subjetividade política que deles deriva. Lideranças como Lênin, Trótski, Kollontai, Krúpskaia e outros foram tanto artífices destes tempos como seu produto. Em seu conjunto, esses fatores objetivos e subjetivos, pode levar à percepção de que a Revolução Russa é um acontecimento único e do qual não se pode retirar nenhum aspecto universal.

No entanto, para aqueles que compreendem os fundamentos da dialética materialista, não é novidade que uma universalidade é a síntese de múltiplas particularidades e que exatamente aquilo que confere a singularidade a um acontecimento pode ser também a base de sua universalidade. A particularidade da revolução Russa expressa a forma específica em esta formação social transitou para o modo de produção capitalista, amaneira particular que se expressou a formação de seu Estado, a forma típica que assumiu nestas condições a luta de classes, principalmente no momento em que se produzem situações revolucionárias. Dito de outra forma, uma maneira particular através da qual os russos viveram a singularidade de nossos tempos.

Marx e Engels também viveram tempos particulares e ao mesmo tempo em que tiveram que atuar e responder a questões muito bem determinadas da conjuntura política da luta de classes em que estavam envolvidos, teorizaram sobre os caminhos da revolução proletária. A Prússia do século XIX não é a Rússia do início do século XX, mas ao abstrair as condições particulares emerge uma singularidade que pode indicar momentos de uma universalidade em construção.

Em sua Mensagem do Comitê Central à Liga dos Comunistas (1850) Marx e Engels apontam alguns aspectos que devemos ressaltar: a) os trabalhadores encontram-se em uma situação histórica na qual ainda lutam contra os adversários de seus adversários, o momento da revolução burguesa; b) no curso desta luta os trabalhadores devem estabelecer alianças e, por isso, devem se preocupar em não marchar a reboque de seus aliados que devem triunfar em um primeiro momento, consolidando seu poder contra o proletariado; c) para isso os trabalhadores devem cuidar de sua independência e autonomia de classe, tanto mantendo sua organização independente (legal e secreta) como um programa próprio; d) No curso desta luta, no momento em que a burguesia tentar consolidar o poder em benefício próprio, os trabalhadores devem criar órgãos próprios de poder, criando uma dualidade de poderes que deve ser defendida a todo custo contra os ataques da burguesia; e) Trata-se de gerar, desde o início da Revolução Burguesa, as condições de desenvolvimento de uma Revolução Proletária, uma revolução em permanência, ou mais precisamente, uma Revolução Permanente.

Não é necessário muito esforço para notar que se abstrairmos o contexto particular das lutas na Alemanha de 1848/1850, estamos diante de uma universalidade vazia de determinações, ou seja, uma singularidade, que é praticamente o roteiro da revolução Russa. Não porque Marx tinha dons premonitórios, mas porque a análise da realidade particular de seu tempo se eleva a uma universalidade que serve de ponto de partida singular àqueles que pensaram os caminhos da revolução no inicio do século XX.

Ocorre que as experiências posteriores vão agregando novas particularidades, tornando cada vez mais rico a universalidade que daí deriva. Em 1850 Marx não tem como responder uma questão central: qual a forma do Estado nesta transição revolucionária. Será a Comuna de Paris de 1870 que agregará a forma finalmente encontrada.

A revolução Russa dá um passo essencial nesta construção histórica, sem dúvida por suas particularidades, mas estamos convictos que inscreve novos aspectos à universalidade da alternativa revolucionária. Acreditamos que a revolução Russa nos deixa algumas questões essenciais para pensar os nossos dias, são elas: a) a questão do Estado; b) a combinação da espontaneidade e da ação política dirigida conscientemente pela classe revolucionária; c) a questão da transição, tanto no que diz respeito a forma econômica quanto a forma política a ela correspondente.

Antes, entretanto, gostaríamos de destacar que a experiência russa é a última que atualiza e supera a primeira das características apontadas por Marx e Engels em 1850, qual seja, o momento democrático burguês da revolução proletária. Os marxistas posteriores, por uma série de motivos, transformaram este momento em uma "etapa", em um longo processo em que o capitalismo deveria se desenvolver e consolidar antes que fosse possível uma revolução socialista. Na verdade, esta é uma afirmação característica da II Internacional e do reformismo que levará à sua falência e que será transformada em dogma pela III Internacional stalinizada. A visão de Lênin e Trótski é, neste aspecto, heterodoxa ao ser ortodoxa. Ambos, por razões muitas vezes distintas, vêm a necessidade de se aproveitar o momento para superar, o mais rapidamente possível, o momento democrático burguês, aproveitando-se da instabilidade da queda do antigo regime para avançar a revolução proletária, de forma que parte do desenvolvimento necessário será realizado já sob o poder proletário. Ambos parecem relativizar a convicção de Marx segundo a qual nenhuma sociedade nova pode surgir antes que se desenvolvam todas as forças produtivas que a velha sociedade pode conter (daí sua heterodoxia), para se aproximar de Marx e sua afirmação de que o movimento que leva do momento burguês ao momento proletário da revolução é uma revolução permanente (daí sua ortodoxia).

Este fato coloca no centro a questão que julgo ser a fundamental colocada pela experiência soviética: o Estado. Já em agosto de 1917, ao apresentar seu livro sobre o assunto, Lênin afirmava que "a questão do Estado assume, em nossos dias, particular importância, tanto do ponto de vista teórico como do ponto de vista político prático". Mas no que consiste, em suma, esta questão?

Podemos resumir esta complexa questão à afirmação leniniana, sustentada numa compreensão precisa da teoria do Estado em Marx e Engels, segundo a qual o Estado Burguês não pode ser ocupado ou disputado, mas deve ser aniquilado pela ruptura revolucionária, substituindo-o por um Estado Proletário. Mencheviques e Socialistas Revolucionários de direita (existiam os de esquerda, como Martov que se opuseram a política de participação no Governo Provisório), estavam convencidos que era possível participar no Estado burguês graças a uma correlação de forças favorável que permitiria utilizar o Estado como instrumento de uma intencionalidade popular.

Esta questão teórica e política/prática foi respondida cabalmente pela Revolução Russa, mas não somente, também pela derrota da Revolução Alemã de 1918/19, por toda experiência socialdemocrata do pós segunda guerra, pelo governo da Unidade Popular no Chile (1970-1973) e inúmeras outras experiências do século XX.

No entanto, curiosamente, a esquerda construiu uma certeza no sentido exatamente oposto a este. Parece ter se consolidado a convicção que a ruptura e a passagem revolucionária para um Estado Proletário é um aspecto particular da Rússia e que a característica própria dos tempos que se abriam era de uma alteração na natureza do Estado que permitiria que se estabelecesse sua disputa e utilização no sentido da transição socialista ou de uma transição para o socialismo. É comum atribuir a Gramsci esta concepção de um "Estado ampliado" em contraposição a uma compreensão "restrita de Estado" presente em Marx e Lênin. Não cabe aqui aprofundar se esta atribuição é ou não pertinente (estamos convencidos que Gramsci debate sobre a forma da via revolucionária, mas não rompe com os fundamentos da Teoria de estado de Marx e, mesmo, de Lênin), mas o fato é que a Revolução Russa aconteceu e se consolidou, assim como a Chinesa em 1949 e a Cubana em 1959, ao mesmo tempo em que nenhuma das chamadas experiências de "democratização" do Estado burguês, desde o eurocomunismo e a social democracia até as recentes experiências democráticas populares levaram a nada remotamente perto do socialismo.

A atual tendência do irracionalismo hoje reinante funciona assim: escolhe um aspecto da realidade, o isola e proclama o fim da possibilidade do socialismo num êxtase hiper-empirista, logo em seguida, quando a realidade parece desmentir sua convicção, passa a defender que a realidade não existe.

O mesmo ocorre com o segundo ensinamento da Revolução Russa. Lênin tinha certeza que as revoluções não acontecem simplesmente, elas precisam ser feitas. Isto é, a revolução proletária possui um aspecto de intencionalidade política muito mais marcante que sua antecessora histórica. Isto não significa que ela seja unicamente produto da intencionalidade da classe revolucionária ou de sua organização política. O que a Revolução Russa comprovou, e o rico debate entre Lênin e Rosa apenas expressa no campo teórico, é que a revolução de nossos tempos é uma combinação entre aspectos espontâneos e intencionais, objetivos e subjetivos, da luta de classes. Não é o caso de repassar aqui os fatos sobejamente conhecidos, mas reafirmar que a revolução não teria sido possível sem episódios onde a espontaneidade da classe foi marcante – tais como a insurreição de 1905 ou a de fevereiro de 1917, a revolta nas bases militares, as greves – da mesma forma que nada disso teria encontrado sucesso sem a capacidade de organização, de ação política e iniciativa de direção no sentido de resistir – como ocorreu depois do fracasso das jornadas de junho e a reação do governo, como na resistência ao golpe de Kornílov e a ação que levou à derrubada o Governo Provisório como em outubro de 1917.

No lugar desta complexa dialética, a esquerda contemporânea parece ter se rendido a um culto ao espontâneo e a uma inversão estranha. Empenha-se em realizar as tarefas objetivas, fazer manifestações, produzir greves, criar insatisfação, enquanto espera que a história resolva os problemas que só a ação subjetiva da classe pode gerar, tais como as questões da estratégia e da tática, o programa, o plano operacional e a via, os problemas da organização e outros.

Sem dúvida, a maior contribuição da Revolução Russa deriva do fato que ela possibilitou levar a transição socialista a um ponto onde não se havia antes chegado. Para o bem e para o mal, isto é, o que os russos generosamente nos ensinam se fundamenta em grande parte nos seus erros. Aqui, mais uma vez retornamos a questão do Estado. Se para nós a questão da necessária destruição do Estado burguês e sua substituição por um Estado proletário se comprovou válida, pela experiência soviética e pelos fatos posteriores, a relação entre o Estado proletário e a transição socialista nos coloca uma série de questões sobre as quais precisamos refletir.

Marx parecia estar convencido que na primeira fase da sociedade comunista, o que nós resolvemos chamar de socialismo, ocorre uma transição econômica que tem por objetivo eliminar as bases daquilo que um dia dividiu a sociedade em classes e que ele sintetiza em cinco iniciativas: a) superar a escravizante subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho; b) superar o antagonismo entre trabalho intelectual e manual; c) transformar o trabalho de meio de vida em primeira necessidade da existência; d) superar o indivíduo burguês, desenvolvendo o ser social em todos os sentidos; e) desenvolver as forças produtivas para sejam capazes de produzir além das necessidades, em abundância. Somente isso permitiria que cada um trabalhasse de acordo com suas possibilidades e recebesse de acordo com suas necessidades superando "os estreitos horizontes do direito burguês", conforme Marx famosamente afirmou na Critica do programa de Gotha . A estas mudanças econômicas corresponderia uma transição política na qual o Estado só poderia ser a Ditadura Revolucionária do Proletariado.

Coerente com sua concepção de revolução permanente, Marx pensava que não apenas a passagem do momento democrático burguês para o momento proletário, mas da primeira fase para o comunismo, portanto, para uma sociedade sem classes e sem Estado, deveria ser um movimento contínuo. Dada as características das tarefas enunciadas, este movimento não poderia ser efetivado pelo ato único da revolução, daí a concepção de uma transição e da necessidade do Estado. Tal necessidade resulta diretamente da experiência da Comuna à qual nos referimos, seja pela necessidade de resistir às classes dominantes derrotadas e destruir sua capacidade de reação o que faltou fazer na Comuna de Paris), seja pela consolidação de uma ordem que seja fosse de conduzir a transição até a superação do Estado.

Lênin atribui este movimento um caráter de "definhamento", uma vez que a própria ação do Estado proletário na medida em que fosse implementando as medidas citadas, iria tornando cada vez mais desnecessário o Estado. Para isso, a Ditadura do Proletariado deveria ser um Estado dos operários, camponeses e demais trabalhadores e não um Estado dos funcionários, como alertava o próprio Lênin em seu O Estado e a revolução. Ora, a experiência soviética demonstrou que a suspeita dos anarquistas que um Estado desenvolveria interesses próprios em sua perpetuação, independente do caráter revolucionário da classe que representa, acabou por se mostrar mais problemático que nós marxistas julgávamos.

O fato é que o Estado não definhou, pelo contrário, fortaleceu-se e consolidou uma profunda deformação burocrática invertendo a previsão leniniana, isto é, tornou-se de fato um estado dos funcionários com enorme poder sobre os trabalhadores. Costuma-se utilizar este fato como comprovação daquela convicção citada sobre o denominado caráter ampliado do Estado contemporâneo, isto é, o caráter "oriental" da formação social russa, nos termos gramscianos, teria permitido a tomada do poder, mas condenado a transição a um ato dirigido pelo alto, imposto à sociedade sem mediações. Nesta leitura os problemas da transição seriam melhor resolvidos pelo desenvolvimento de uma sociedade civil forte, resultado de um pleno desenvolvimento do capitalismo. O problema é que esta leitura faz com que muitos visitem o túmulo dos bolcheviques para criticá-los por sua impaciência enquanto levam flores e desculpas aos injustiçados mencheviques.

Acreditamos que os motivos e as determinações deste fenômeno são outros (trataremos deste assunto na próxima coluna), no entanto, não podemos concordar que a solução seria não ter ousado tomar o poder e construir uma experiência proletária e socialista, até porque a alternativa à tomada do poder pelos bolcheviques aliados aos SRs de esquerda e anarquistas não seria o lento amadurecimento de uma democrática sociedade ocidental, mas o golpe de Kornílov e possivelmente o desmembramento da Rússia em áreas de influência imperialista como ocorreu na China.

Assim, o risco é que muitos enaltecem e celebram a Revolução Russa para defender que hoje devemos fazer exatamente o oposto do que nossos camaradas realizaram: devemos ceder à tentação de tomar o poder e, no lugar da ruptura revolucionária propor a democratização do Estado burguês até que com o desenvolvimento das forças produtivas e da consciência de classe dos trabalhadores se torne possível a passagem para o socialismo; devemos acreditar que as massas mudarão a sociedade quando estiverem prontas e dispostas a fazê-lo e as demais classes da sociedade (principalmente as camadas médias) estejam dispostas a aceitar isso sem surtar histericamente ou reagir de forma brutal; e, finalmente, devemos rejeitar a proposta de socializar os meios de produção exercitando formas mistas de propriedade e convivência de relações sociais de produção que vá introduzindo, aos poucos, formas socializadas em uma economia de mercado até que, em um místico dia futuro, cheguemos ao socialismo sem traumáticas rupturas.

Os herdeiros do reformismo se inquietam diante de uma realidade que atualiza o impasse do início do século: a guerra, o imperialismo, a crise, a prepotência de um Estado de classe se esforçando para manter um Modo de Produção moribundo. Lênin, na mesma apresentação do livro citado afirmou que dezenas de anos de relativa paz criaram os elementos do oportunismo que predominava nos partidos socialistas oficiais, mas que a crise teria varrido as certezas que embasam os desvios oportunistas e o líder bolchevique podia prever, com certo otimismo, ao final de sua apresentação que:

"A questão da atitude da revolução socialista do proletariado em relação ao Estado adquire, desse modo, não apenas importância política prática, mas também relevância da maior atualidade como questão do esclarecimento das massas sobre aquilo que terão de fazer num futuro próximo para sua libertação do jugo do capital." (Vladímir Lênin, O Estado e a revolução , p.24)

As últimas décadas de "relativa paz" criaram as condições para a ressurreição do oportunismo. A crise atual recria as condições para a crise deste oportunismo e a retomada de uma política revolucionária.

Parece-me, por vezes, que alguns celebram a Revolução Russa para melhor esquecê-la.

O original encontra-se em blogdaboitempo.com.br/... e em pcb.org.br/portal2/16771

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .



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REVOLUÇÃO RUSSA: 100 ANOS DO EVENTO QUE SACUDIU A GEOPOLÍTICA MUNDIAL


Um retrospecto da revolução socialista que deu origem à União Soviética e provocou mudanças em todo o globo, inclusive no próprio capitalismo.

Por Marcelo Fantaccini Brito
https://voyager1.net/


No dia 9 de abril de 1917, Vladimir Ilitch Ulianov, mais conhecido como Lenin, embarcou em um trem na cidade de Zurique, para uma viagem de oito dias com destino a Petrogrado. Essa cidade era a capital da Rússia naquele tempo. Tinha o nome de São Petersburgo, mas mudou em 1914, por aquele nome ser muito germânico. A cidade ainda seria rebatizada como Leningrado, em homenagem a Lenin, até voltar a se chamar São Petersburgo em 1991. O trem no qual viajava Lenin havia sido fornecido pelo Kaiser Wilhelm II da Alemanha. Lenin certamente não concordava com as ideias políticas do kaiser, que por sua vez certamente não concordava com as ideias políticas de Lenin. Mas, na política, a máxima do “o inimigo do meu inimigo é temporariamente meu amigo” é válida. O kaiser tinha disposição em ajudar alguém que poderia tirar a Rússia da guerra. Lenin ainda era uma voz minoritária contra a guerra. Os partidos social-democratas da Segunda Internacionaldecidiram apoiar seus respectivos países na guerra, ou seja, apoiar trabalhador de um país matando trabalhador de outro país, sob comando de generais oriundos das classes dominantes, subordinados a governos que representavam os interesses das classes dominantes. Mesmo na Rússia, em abril de 1917, o pacifismo revolucionário ainda não tinha adesão de parcela muito grande da população. A situação de penúria, mais as mortes provocadas pela guerra, haviam estimulado os movimentos de rua que derrubaram o tzar Nicolau II em fevereiro de 1917 (ou março, no calendário ocidental). Mas o governo provisório, formado logo depois da queda do tzar, decidiu manter a Rússia na guerra, e a troca de regime deu um ímpeto renovado à guerra. Os governos dos aliados ocidentais saudaram a revolução de fevereiro, por considerarem que a queda dos Romanov, depois de 300 anos de dinastia, facilitaria a narrativa de que a causa do combate ao kaiser alemão era a luta pela liberdade e pela democracia.
Lenin estava voltando para a Rússia depois de muitos anos no exílio. Sua vida nunca havia sido parada em um mesmo lugar. Nasceu em 1870, em Simbirsk, uma cidade bem interiorana, localizada às margens do Volga. Filho de um professor, teve cinco irmãos (três mulheres e dois homens). Entrou em atividades revolucionárias depois que seu irmão mais velho foi enforcado por ter participado de um complô contra o tzar Alexandre III. Aos 17 anos, ingressou na Universidade de Kazan, participou de círculos revolucionários e foi expulso da universidade por causa de seu radicalismo político. Depois, mudou com sua família para Samara, onde se manteve envolvido em círculos políticos revolucionários e obteve contato com a obra de Karl Marx. Em 1893, mudou-se para São Petersburgo, onde conheceu a ativista socialista e feminista Nadya Krupskaya, que passaria a ser sua companheira. Passou a se dedicar à construção de células marxistas em grandes centros urbanos da Rússia. Era crítico de movimentos socialistas não marxistas. Escreveu “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia”. Durante a década de 1890, chegou a ser preso, exilado por um breve período na Sibéria. Em 1898, foi um dos fundadores do Partido Social Democrata Russo. Entre 1900 e 1917, residiu em Munique, LondresCracóviaGenebra e Zurique. Em 1917, além de se envolver na revolução, ainda teve tempo para escrever “Imperialismo, o estágio superior do capitalismo”.

A chegada de Lenin na Estação Finlândia.

Quando o trem chegou à Estação Finlândia, em Petrogrado, Lenin fez um discurso para uma plateia de bolcheviques que o aguardavam. O discurso não foi gravado, e por isso não se sabe completamente todo o seu conteúdo, mas é conhecido que Lenin criticou o governo provisório, defendeu o fim da guerra. Os bolcheviques ainda não estavam em número muito grande naquele tempo, mas sua organização permitia feitos formidáveis. É preciso ter em mente que a tecnologia daquele tempo era bem mais precária do que a tecnologia disponível nos dias de hoje. Se Lenin tivesse vivido nos dias atuais, ele poderia ter um tablet no trem, para publicar suas teses em forma de posts no Facebook, recebendo likes, comentários e compartilhamentos (isso se o trem tivesse wi-fi). A sua chegada à estação com a consequente aglomeração de pessoas para ver o discurso poderia ser um evento de Facebook com muitos “going to”. O discurso poderia ter tido transmissão ao vivo via web, e a audiência poderia ter tirado selfies e postado imediatamente. Mas tudo isso era longe de ser realidade cem anos atrás. Todos esses progressos mencionados dependeram dos satélites artificiais, e o primeiro satélite artificial foi o Sputnik, lançado 40 anos depois. Em 1917, porém, com comunicações e transportes tão precários, a disciplina na organização era ainda mais importante.
Em abril de 1917, nem os bolcheviques mais fanáticos esperavam que tomariam o poder, ainda no final do mesmo ano, mas o acúmulo de fracassos na guerra contra a Alemanha, somado com o prosseguimento da deterioração dos padrões de vida da população, criou gradualmente um clima favorável a quem propunha três coisas muito simples: paz, terra e pão.
Uma pergunta inevitável é: como foi possível que um país com cem milhões de camponeses e apenas três milhões de operários tenha sido o lar da primeira revolução operária do mundo? Para responder esta pergunta, é importante retroceder ao século XIX.
Porém, antes de prosseguirmos, também aconselhamos a leitura do artigo A esquerda não precisa defender eternamente Stalin: resposta ao PCO como complemento.

A Revolução de Outubro e o surgimento da URSS


Soldados da Revolução, de Vladimir Kholuyev (1964).

Império Russo no século XIX era gigante em termos de território. Era maior não apenas do que a Federação Russa dos dias atuais, como também maior do que a União Soviética. Incluía até mesmo parte das terras que hoje fazem parte da Polônia e da Finlândia. Na virada do século XIX para o século XX, o Império Russo tinha aproximadamente 125 milhões de habitantes. A esmagadora maioria destes habitantes era composta por camponeses, muito pobres. Havia uma quantidade grande de nacionalidades, idiomas e religiões dentro do império, mas a Igreja Católica Ortodoxaera a religião oficial. Até 1905, o império era uma autocracia. Até 1861, existia servidão. A Rússia era um centro de conservadorismo dentro da Europa. Havia uma disputa entre os defensores de maior ocidentalização e defensores da preservação das tradições russas. Havia alternância entre tzares mais modernizantes e tzares mais retrógrados. A Rússia passou por um processo de industrialização e crescimento econômico da metade do século XIX até as vésperas da Primeira Guerra Mundial. Contou com muito investimento francês. Ainda assim, continuava um país rural e mais pobre do que os países da Europa Ocidental.
A cultura da Rússia imperial não era pobre. Afinal, era o país de Fiodor DostoievskiLeon TolstoyAlexander PushkinIvan GoncharovPiotr TchaikovskyIgor StravinskiRimsky-KorsakovIvan ShishkinDmitri Mendeleiev. É óbvio que em um país de 120 milhões de habitantes, expoentes das artes, da filosofia e das ciências apareceriam. Havia uma vida cosmopolita nas cidades de Moscou e São Petersburgo. Esta vida cosmopolita permitiu inclusive o surgimento de pessoas como Lenin. Contudo, para a grande maioria da população, camponesa e rural, a vida era de muita pobreza e pouca instrução. Não só na economia, como também na cultura; a Rússia vivia um “desenvolvimento desigual e combinado”.
Marx considerava por muito tempo que a revolução socialista só poderia ocorrer onde as forças produtivas capitalistas estivessem plenamente desenvolvidas. Não era o caso da Rússia. Mas, na Rússia, havia, já no século XIX, um movimento chamado narodnik, o qual, por considerar que o campo russo já tinha um regime de comunas agrárias, seria possível passar diretamente para o comunismo, sem a necessidade do pleno desenvolvimento do capitalismo.
Porém, no final de sua vida, em trocas de cartas com Engels e com revolucionários russos, reunidas posteriormente na publicação “Lutas de classes na Rússia”, Marx flexibilizou a ideia do etapismo. Passou a aceitar a possibilidade da Rússia não seguir caminho semelhante àquele trilhado pelos países da Europa Ocidental. Os narodniks, e Marx e Engels nas cartas, não previram como acabaria realmente acontecendo a Revolução Russa, mas flexibilizar o etapismo foi um passo importante, uma vez que as revoluções socialistas do século XX aconteceram na periferia do capitalismo.
Lenin e Trotsky não eram narodniks. Eles concordavam com a ideia marxista original de que a Rússia precisava do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas antes de entrar no comunismo. Consideravam que a revolução poderia acontecer na Rússia antes de acontecer nos países da Europa Ocidental, mas que a consequência da revolução na Rússia não seria implantar o comunismo na Rússia, e sim detonar as revoluções na Europa Ocidental.
Em 1898, Lenin foi um dos fundadores do Partido Social Democrata Russo. Apesar do nome, o partido nada tinha a ver com o Partido Social Democrata Brasileiro atual. Naquele tempo, “social-democrata” ainda era sinônimo de marxista. O termo “social-democrata” virou pejorativo para comunistas marxistas a partir de 1914, quando cada partido social-democrata ocidental decidiu apoiar seu país na guerra, e mais especificamente com a formação da Terceira Internacional, depois da Revolução de 1917, algo que será abordado posteriormente.
Em 1903, ocorreu a cisão no Partido Social Democrata Russo entre os bolcheviques e os mencheviques. Ao contrário do que algumas pessoas pensam erroneamente, a principal divergência naquele tempo ainda não era o fato dos bolcheviques serem os “radicais” e os mencheviques serem os “moderados”. A principal divergência não estava nas ideias, mas na forma de organização. Os mencheviques aceitavam a adesão de qualquer um que fosse vagamente socialista. Os bolcheviques defendiam um partido de militantes profissionais, fiéis ao princípio do centralismo democrático, ou seja, defendia um modelo de partido em que todos que estivessem nele só falassem em público em nome do partido, e não em nome de si próprio. Lenin foi líder da facção bolchevique. Martov foi líder dos mencheviques. Inicialmente, Trotsky era menchevique.
Além das facções do Partido Social Democrata Russo, outro grupo político importante era o dos Social Revolucionários, um movimento de camponeses.
Em 19041905, ocorre a Guerra Russo-Japonesa. Por causa do desgaste provocado por esta guerra, aconteceu uma série de insurreições na Rússia ao longo de 1905. Em janeiro de 1905, ocorreu o Domingo Sangrento (não confundir com o do U2, ocorrido na Irlanda décadas depois), em que uma manifestação pacífica de trabalhadores  que não pedia a derrubada do tzar, apenas liberdade política, liberdade sindical, eleições e melhores condições de trabalho  é recebida a bala por soldados do tzar, terminando em muitos mortos. Posteriormente, ocorreram motins no exército e na marinha, sendo o mais conhecido deles aquele ocorrido no Encouraçado Potemkin, retratado anos depois no famoso filme de Eisenstein. Foi em 1905 que surgiram os sovietes, que eram conselhos de trabalhadores. No final de 1905, o tzar é forçado a ceder, abre (parcialmente) a mão de seu poder autocrático e aceita a formação de um parlamento, o Duma, a realização de eleições e a existência de partidos legais.
Ao longo do século XX, muitos ditadores tinham o hábito de parecer democratas na fachada. Não era o caso de Nicolau II. Quando ele cedeu e aceitou o parlamento, ele expressou abertamente que esta não era a sua vontade. Mesmo com as mudanças de 1905, a Rússia não se tornou uma monarquia constitucional idêntica às da Europa Ocidental. O tzar ainda dissolvia parlamentos que não fossem de sua preferência. Jamais se tornou uma figura meramente decorativa.
Em 1912, ano do centenário da vitória sobre Napoleão, parecia que os momentos mais tensos de 1905 haviam ficado para trás. A Rússia parecia estar vivendo um período de prosperidade econômica. Não havia mais grandes rebeliões populares. Até que… dois anos depois, teve início uma nova guerra, muito maior que a de 1905, capaz de impulsionar revoluções muito maiores também.
Em 1914, teve início a Primeira Guerra Mundial. Não se concretizou a estrofe da letra da Internacional que diz “paz entre nós, guerra aos senhores, façamos greve de soldados, somos irmãos trabalhadores, se a raça vil cheia de galas, nos quer à força canibais, logo verá que as nossas balas, são para os nossos generais”. Os partidos social-democratas da Segunda Internacional, como o Partido Social Democrata Alemão e o Partido Trabalhista Britânico, decidiram apoiar seus respectivos países. Operários sindicalizados se alistaram nos exércitos. Os representantes destes partidos nos parlamentos não votaram contra o orçamento destinado para a guerra. Lenin pode ter ficado decepcionado com a postura desses partidos, mas também pode ter visto que o momento de seu pequeno grupo estava chegando.
Depois de dois anos e meio de guerra, o regime tzarista ficou completamente desgastado. Um movimento de operárias, no Dia Internacional da Mulher, 8 de março do calendário ocidental, foi o estopim de uma série de movimentos de rua que fizeram o Duma destituir o tzar. Foi formado um governo provisório, liderado por Lvov. O socialista moderado Alexander Kerenski, que antes era apenas um ministro, passou posteriormente a chefiar o governo.
Pouco depois, Lenin retornou da Suíça, conforme mencionado no início deste texto. Trotsky também retornou à Rússia, e aderiu aos bolcheviques. Os sovietes, depois de duramente reprimidos em 1905, voltaram a funcionar. No início, os sovietes ainda estavam mais ligados aos mencheviques e aos social-revolucionários do que aos bolcheviques. Ainda assim, uma das bandeiras de Lenin era “todo poder aos sovietes”. A outra era também muito simples de ser compreendida: “paz, terra e pão”. Paz para toda a Rússia, ou seja, fim de seu envolvimento na guerra (e se possível, extensão da revolução nos outros países beligerantes e fim da guerra), pão para os trabalhadores urbanos, algo que faltava, uma vez que o país estava em guerra, e terra para os trabalhadores rurais, ou seja, reforma agrária. Lenin enxergava que a revolução socialista deveria ser uma revolução operária, mas, por pragmatismo, compreendeu que o apoio dos camponeses era fundamental, uma vez que eles eram a esmagadora maioria da população. Por isso, se aliou aos social-revolucionários.
A reivindicação de “paz, terra e pão” passou a ganhar força à medida que a Rússia continuava acumulando fracassos na guerra, e o otimismo inicial com a revolução de fevereiro ia se dissipando. Os sovietes foram se tornando cada vez mais bolcheviques. O governo Kerensky ficou tão fraco que sofreu uma ameaça de golpe feita por Kornilov, um general monarquista. Kerensky contou com a ajuda dos bolcheviques para derrotar este golpe. Observando o vazio de poder, os bolcheviques perceberam que a hora deles havia chegado, não sendo relevante no momento a “questão da necessidade da fase capitalista”. Isso era algo a se pensar depois da tomada do poder. Uma resolução de Lenin defendendo a tomada imediata do poder foi aprovada pelo comitê central do Partido Bolchevique. Em 7 de novembro de 1917, no calendário ocidental, os bolcheviques tomaram sem resistência o Palácio de Inverno e pontos estratégicos de Petrogrado. Não houve participação de grandes multidões no movimento de tomada do poder pelos bolcheviques, nem a favor, nem contra.
Imediatamente foram estabelecidas medidas como a expropriação de grandes propriedades rurais, a expropriação de imóveis urbanos vazios, a criação de uma seguridade social, a permissão para o voto feminino, a legalização do divórcio e a legalização do aborto.

Poster “Por uma Rússia Unida”, em que o exército vermelho é retratado como um dragão e o exército branco como um cavaleiro templário.

Se a tomada do poder pelos bolcheviques foi um acontecimento relativamente pacífico, sua manutenção não foi. Dependeu de uma Guerra Civil, que durou cinco anos, e matou entre 7 e 12 milhões de pessoas, somando militares e civis. Do lado dos contrarrevolucionários, estava o Exército Branco, que uniu todas as tendências políticas anti-bolchevique, que iam de monarquistas a socialistas moderados. Do lado dos revolucionários, estava o Exército Vermelho, no qual Trotsky teve importância muito grande para a formação. Mesmo com intervenção de potências estrangeiras em favor do Exército Branco, o Exército Vermelho acabou vencedor. Fato interessante a ser observado é que uma das potências estrangeiras interventoras foram os Estados Unidos. Apesar da Guerra Fria ter durado de 1945 a 1991, e ter gerado temor de guerra nuclear entre norte americanos e soviéticos, a única vez em que exércitos norte americano e soviético se enfrentaram diretamente, em lados opostos, ocorreu em 1918.
Os exércitos interventores estrangeiros eram originários dos países aliados. Em março de 1918, o recém instalado governo bolchevique selou a paz com a Alemanha através do Tratado de Bret-Litovsky. Antes de fechar o tratado, o exército alemão ainda estava avançando sobre a Rússia, e, por medida de segurança, a capital foi transferida de Petrogrado para Moscou, que era a antiga capital russa até 1721. Moscou, por ter uma localização mais interiorana, é uma cidade mais protegida. Além disso, pesou na decisão o fato de São Petersburgo ter sido por muito tempo o símbolo da Dinastia Romanov.
Contribuiu para a vitória do Exército Vermelho o fato de antigos oficiais tzaristas terem feito parte, por patriotismo, e não por simpatia às ideias comunistas. Eles consideravam que os bolcheviques teriam mais capacidade de manter a Rússia forte e unida do que os liberais. E de fato estavam corretos: a Rússia se manteve unida, enquanto que o Império Austro-Húngaro e o Império Turco-Otomano, que também foram impérios destruídos pela Primeira Guerra Mundial, se esfacelaram em muitos pedaços.
Terminada a Guerra Civil, em dezembro de 1922, foi criada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), composta pela Rússia, a maior destas repúblicas, e por repúblicas de menor extensão territorial e população, como a Ucrânia, a Bielorússia, etc. Mesmo as repúblicas não russas faziam parte do Império Russo. Quem fazia parte do Império Russo, mas não entrou na URSS, foram a Polônia e a Finlândia, que causaram as únicas derrotas do Exército Vermelho.
A vitória dos comunistas, porém, foi apenas interna. A esperança de que a Revolução Russa seria um detonador de revoluções no ocidente, no início parecia promissora, pois ocorreram levantes na Alemanha e na Hungria logo depois da Primeira Guerra Mundial. Mas estes movimentos foram derrotados. Na China, fracassou a tentativa de aliança do Kuomitang com os comunistas. A URSS ficou sozinha na construção do socialismo.
Os problemas a serem enfrentados pela recém-criada URSS eram bem diferentes daqueles descritos por Marx nos países avançados da Europa Ocidental no século XIX. Marx via a crise do capitalismo como uma crise de superprodução e subconsumo. O problema da URSS, em 1922, definitivamente não era a superprodução. Tratava-se de um país que já era pobre e ainda havia sido devastado por uma guerra mundial e uma guerra civil, e, além de tudo, estava isolado do mundo. O problema maior naquele momento não era distribuir, e sim voltar a produzir. A discussão da “necessidade do desenvolvimento das forças capitalistas” foi irrelevante na tomada do poder pelos bolcheviques, mas com o poder já consolidado, tornou-se inevitável. Não havia consenso sobre esta questão. Havia duas soluções possíveis: permitir a existência de uma economia capitalista, com propriedade privada dos meios de produção e leis de mercado em funcionamento, ou fazer que o Estado exercesse o papel dos capitalistas, ou seja, se tornasse diretamente um produtor, tentasse extrair o maior lucro possível (leia-se comprimindo salários) para poder reinvestir este lucro em aumento da produção.
Lenin criou a Nova Política Econômica (NEP), permitindo práticas capitalistas. Mas não teve muito tempo de ver os resultados. Faleceu em janeiro de 1924. Para sua sucessão, houve a famosa disputa entre Trotsky e Stalin. Quem conhece a História por meio de memorização de apostilas de cursinho, sabe que Trotsky defendia a “revolução permanente” e Stalin defendia o “socialismo em um só país”. Bem, esta visão não é equivocada, mas é exagerada. Mesmo sob Stalin, a URSS nunca deixou de se envolver na tentativa de espalhar o socialismo pelo mundo. Mesmo Trotsky aceitava o fato de que se a revolução mundial fracassasse, os comunistas deveriam continuar governando a URSS. Trotsky às vezes é utilizado como um símbolo de comunismo libertário, em contraposição ao autoritarismo de Stálin. Trata-se de um símbolo equivocado. Trotsky e Stalin tinham muitas divergências, mas autoritarismo não era uma delas. Trotsky não recusava o autoritarismo. Trotsky era contra a NEP. Desejava o fim imediato de práticas capitalistas e o início da industrialização pesada comandada pelo Stalin. Bukharin era entusiasta da Nova Política Econômica, defensor da existência de práticas capitalistas no socialismo, e ajudou Stalin inicialmente a manter a NEP. Em 1928, era perceptível como a NEP havia recuperado a atividade agrícola. Porém, era insuficiente para o início da industrialização forçada. Nesse momento, Stalin adotou a sugestão de Trotsky (sem dar o devido crédito), acabou com a NEP, iniciou a coletivização forçada das terras e iniciou a industrialização pesada liderada pelo Estado. Bukharin passou para a oposição. Stalin não admitia contestações. Tanto Trotsky pela esquerda, quanto Bukharin pela direita, seriam assassinados. Ainda sobre a relação de Stalin com seus dissidentes, não é verdadeira a história de que Stalin não atendia o telefone porque existia o risco de ser um Trotsky. Na verdade, Stalin não atendia o telefone porque a secretária dele fazia isso. Stalin não falava Português, e é pouco provável que em Russo ou em Georgiano, a palavra Trotsky tivesse semelhança com trote.
Outra mudança que ocorreu quando Stalin assumiu o poder foi uma guinada conservadora. Stalin passou a incentivar o nacionalismo, retomou tradições do tempo do tzar, melhorou a relação com a Igreja Católica Ortodoxa Russa e reverteu a legalização do aborto.
A partir de 1928, a URSS passou por um intenso processo de industrialização pesada. Ficou imune à Depressão dos anos 1930, que ocorreu no mundo capitalista. Sua capacidade de produzir um número superior de veículos blindados em comparação com a Alemanha foi decisiva para a vitória na Segunda Guerra Mundial. Os soldados do Exército Vermelho, que colocaram a bandeira vermelha com a foice e o martelo no alto do Reichstag, poderiam ter deixado um bilhetinho de agradecimento por aquele trem emprestado 28 anos antes. Na década de 1950, a URSS já estava dominando a tecnologia nuclear e espacial. A proporção PIB per capita da Rússia / PIB per capitados Estados Unidos, que era de 28% em 1913, passou a ser de 35% em 1960 (ver Figura 1). Por outro lado, a coletivização forçada das terras gerou milhares de presos políticos e períodos de fome. Os expurgos realizados entre 1936 e 1939 geraram um número de execuções na casa dos seis dígitos. Quadros do Partido Comunista e altos oficiais do Exército Vermelho foram executados. A NKVD aterrorizava até quem fazia parte dela. Em 1956, sob Nikita Khrushchev, a própria URSS decidiu remover Stalin do seu quadro de heróis nacionais.

O impacto da Revolução no movimento operário internacional e no mundo

Até o início da Primeira Guerra Mundial, os partidos social-democratas, fundados na segunda metade do século XIX, eram os partidos de orientação marxista. Exemplos são o Partido Social Democrata Alemão, o Partido Socialista Francês e o Partido Trabalhista Britânico. Eles não eram os únicos representantes do movimento operário. O anarquismo era forte. Depois da Revolução de 1917, houve uma cisão definitiva com social democratas. Em 1921/1922, foram fundados os Partidos Comunistas no mundo inteiro. Estes partidos seguiam os princípios do centralismo democrático dos bolcheviques e estavam vinculados à Terceira Internacional, também chamada de Comitern, comandada por Moscou. Enquanto isso, os partidos social-democratas passaram a aceitar o capitalismo e se limitar a propor reformas, como a tributação progressiva e o Estado de Bem Estar Social. Foi a partir desse momento que o termo “social-democrata” se tornou pejorativo para comunistas marxistas revolucionários. Na maioria dos países, os partidos social-democratas eram maiores do que os partidos comunistas. Mas por muito tempo, os partidos comunistas de orientação leninista, da Terceira Internacional, dominaram o espaço da extrema esquerda no espectro político. Os anarquistas, que eram muito fortes no início do século XX, passaram a ter importância muito grande apenas na Espanha depois da Primeira Guerra Mundial. Os partidos trotskistas da Quarta Internacional nunca tiveram a mesma relevância do que os partidos leninistas da Terceira. Somente a partir da década de 1960 que partidos, movimentos e líderes políticos e intelectuais de extrema esquerda, críticos da social-democracia, mas também críticos da orientação de Moscou, passaram a ter grande influência.

No período entreguerras, as únicas experiências socialistas fora da URSS ocorreram na Mongólia e em algumas partes da China. Porém, ao fim da Segunda Guerra Mundial, houve nova onda de revoluções socialistas. Meio século depois da chegada de Lenin à Estação Finlândia, um terço da humanidade vivia em algum país governado por um partido que seguia princípios leninistas. RússiaLeste EuropeuChinaCubaVietnãArgélia… As revoluções socialistas ocorreram todas na periferia do capitalismo global, diferente do que Marx pensava durante a maior parte de sua vida, e, portanto, a revolução socialista no século XX significou muito mais desenvolvimento nacional, independência e industrialização do que igualitarismo.

Uma conquista soviética na capa da revista Time: Yuri Gagarin, o primeiro homem no espaço.

E qual foi o legado da Revolução de Outubro de 1917 na Rússia? Como foi dito anteriormente, 50 anos depois dessa revolução, um terço da humanidade vivia em países governados por partidos comunistas. Esses governos, em geral conseguiram elevar a taxa de alfabetização e a expectativa de vida das populações. A fome no socialismo, alardeada por órgãos de propaganda anticomunista, foi muito mais exceção do que regra. Ocorreu na União Soviética nas décadas de 1930 e 1940, na China entre 1958 e 1962, na República Democrática e Popular da Coreia na década de 1990. Entre 1947 e 1991, não houve fome na URSS. O consumo médio diário de calorias do cidadão soviético era semelhante ao consumo médio diário de calorias do cidadão norte americano, embora a dieta do soviético fosse menos diversificada (ver Figura 2). Mas os regimes liderados por partidos comunistas falharam miseravelmente tanto em proporcionar possibilidades de consumo para a população além do básico do básico, quanto em liberdades individuais e pluralismo político. Mesmo em relação ao crescimento econômico, no qual a URSS teve bom desempenho até 1970, os resultados positivos pararam de aparecer. A economia russa entrou em colapso nos anos 1990, no período imediatamente seguinte ao do fim da URSS, mas o declínio já estava ocorrendo nas décadas de 1970 e 1980. O catch-up do PIB per capita da Rússia em relação ao dos Estados Unidos entre 1913 e 1988 foi menor do que o de Portugal, Espanha e Itália, países que também faziam parte da periferia europeia, mas não tiveram regimes socialistas (ver Figura 1).

Figura 1: Evolução da relação do PIB per capita dos países selecionados com o PIB per capita dos Estados Unidos entre os anos de 1870 e 2008. Fonte: Anatoly Karlin.

Figura 2: Calorias consumidas por habitante dos EUA e da URSS em datas selecionadas. Fonte: Igor Birman – Personal consumption in the USSR and the USA.
Os efeitos da revolução, porém, não devem ser observados apenas dentro dos países que fizeram parte do chamado “bloco comunista”. A existência de um bloco comunista foi mais benéfica para quem estava fora dele, do que para quem estava dentro dele. É importante lembrar como era o mundo antes do início da Primeira Guerra Mundial: uma parcela enorme do mundo era colônia de potências europeias. O analfabetismo fora da América do Norte e da Europa Ocidental era realidade para mais da metade da população adulta. Mesmo nos países capitalistas avançados, os Estados de Bem Estar Social ainda engatinhavam. O voto feminino não existia em quase nenhum lugar do mundo. Mesmo o sufrágio universal masculino ainda não era realidade em alguns países capitalistas avançados. Direitos trabalhistas eram mínimos. A concentração de renda na França e no Reino Unido naquele tempo era semelhante à do Brasil atual — altíssima. Os impostos sobre renda, riqueza e herança eram insignificantes. A “ameaça comunista” acabou forçando algumas reformas sociais no mundo capitalista. Depois do fim do bloco comunista, em 1989–1991, houve retrocessos em alguns avanços sociais que ocorreram no mundo capitalista ao longo do século XX. Não foi este o único problema causado pelos eventos de 1989–1991. Quando a URSS acabou, apareceram muitas previsões otimistas de que o perigo de uma guerra nuclear havia terminado. Bom, a atual Rússia nacionalista de Putin, saudosa dos tempos do tzarismo e de Stalin, ligada a ele não por saudosismo do comunismo, mas por saudosismo de uma época de grandeza nacional, tornou-se muito mais perigosa do que a URSS.
A entrada na Segunda Revolução Industrial através do planejamento estatal inspirou até mesmo países periféricos com governos não comunistas. Embora a industrialização com intervenção do Estado já tivesse sido realidade na Alemanha e no Japão no século XIX, a URSS deu um impulso ainda maior. O Brasil de Juscelino Kubitschek fez um plano quinquenal. Não apenas a Coreia “ruim”, ou seja, a do Norte, fazia planos quinquenais. A Coreia “boa”, ou seja, a do Sul, também fazia.
Revoluções terem efeito fora de seus domínios territoriais não é novidade. A Revolução Francesa(1789) poderia ser chamada de “fracassada”, uma vez que os Bourbon retornaram ao poder em 1815. Mas foi o estopim de uma série de revoluções liberais da Europa que acabaram com monarquias absolutistas.
Revolução Norte Americana (1776) teve alguns feitos inegáveis, mas quando alguém fala que foi a única revolução “boa”, uma revolução que não aboliu a escravidão nem introduziu o sufrágio universal, a única resposta possível é “então tá”.

Considerações finais

Antes de concluir, é importante responder a algumas críticas ao legado da Revolução Russa feitas pela própria esquerda, seja por social democratas, seja por trotskistas, seja por anarquistas. Críticas à Revolução Russa, mesmo de esquerda, são necessárias, mas algumas delas são decorrentes de ingenuidade política. Por isso, esclarecimentos são importantes.
Uma delas diz que “o Stalin feio e bobo deturpou os belos ideais da Revolução de 1917, matando muita gente, e criando uma ditadura da burocracia do partido sobre o proletariado, em vez da ditadura do proletariado”. Bem, o “matou muita gente” e o “criou uma ditadura da burocracia do partido” não andam lado a lado. A “muita gente” que Stalin matou era parte da burocracia do partido. A “ditadura da burocracia do partido” se consolidou de verdade no tempo de Brejenev, que não matou muita gente.
Outra diz “eu preferiria morar em um país social-democrata como a Suécia, que combina justiça social, com muitas possibilidades de consumo e liberdades individuais, a morar em países socialistas governados por partidos comunistas”. Bem, o autor deste texto também preferiria. Mas a possibilidade de sete bilhões de seres humanos viverem como se vive na Suécia não existe. Para isso, a renda do mundo precisaria ser multiplicada por quatro. E como foi dito anteriormente, a Revolução de 1917 deu impulso para reformas progressistas que ocorreram em muitos lugares como a Suécia.
Sobre a tentativa de nivelar Hitler e Stalin, é necessário fazer alguns esclarecimentos. Stalin matou muita gente para preservar seu regime, o que já é muito ruim. Mas Hitler inovou ao criar uma indústria de eliminar fisicamente etnias inteiras, incluindo crianças que faziam parte dessas etnias. Muitos prisioneiros dos campos do Gulag faleceram de fome, frio, doenças e exaustão em um período em que até a população “livre” sofria privações. Outros prisioneiros cumpriam a pena e eram libertados. Já os campos nazistas, como Auschwitz e Treblinka, tinham propósito específico de matar.
É necessário também comentar sobre aqueles que pensavam: “No tempo da URSS, o socialismo era visto como uma coisa feia. O fim da URSS pode ser a oportunidade do repúdio ao socialismo diminuir, e existir espaço para construir um socialismo mais bonito”. Bom, em 1991, era possível bem assim, mas os fatos desmentiram. Vinte e seis anos depois, o “socialismo mais bonito” ainda não apareceu. É certo que o anticomunismo no mundo declinou depois de 1991 (e reapareceu no Brasil na década de 2010 por algum estranho motivo), mas o declínio só ocorreu porque o anticomunismo se tornou desnecessário.
A Revolução Russa não criou um mar de rosas, mas defender que houve um legado positivo é muito importante, uma vez que a cada ano terminado com 7, chovem na grande mídia comercial textões falando só de “milhões de mortos”, “modelo econômico fracassado”. Esses textões são normalmente escritos por autores ex-querdistas, escalados por esta grande mídia para fazer leitura deturpada de fatos históricos, com o objetivo de favorecer forças políticas conservadoras do momento.
Por fim, respondendo a uma pergunta que alguns leitores poderiam fazer: Por que existe o costume de publicar textos sobre grandes acontecimentos históricos em aniversários redondos destes acontecimentos históricos? É só porque há dez dedos nas nossas mãos? Não, as publicações de aniversários redondos são importantes para divulgar a história para o público leigo, pois ajudam a fazer com que muitos textos sobre o mesmo assunto sejam publicados simultaneamente, facilitando o diálogo.
Referências
ENGELS, F; MARX. K. Luta de Classes na Rússia. Boitempo, 2017.
FRANCIS, P. A Revolução Bolchevique: Sessenta anos de Lenin, Trotsky e Stalin. Folha de S. Paulo. 6 de novembro de 1977
GALBRAITH, J. K. The Age of Uncertainty. Episode 5. 1977
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos – O Breve Século XX 1914/1991. Companhia das Letras. 1994
NERY, T. Lenin e a Revolução no elo mais fraco. Palestra integrante do curso “Estratégias para a Revolução Socialista” realizada no Sindmed Rio de Janeiro no dia 4 de outubro de 2017
OLIVEIRA, F. A esfinge do tempo: para onde vai o socialismo? Revista de Economia Política. Vol.1 nº2. 1981
ZIZEK, S. Em defesa das causas perdidas. Boitempo, 2011.


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Revolução & Democracia — cem anos de busca

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Um século depois dos bolcheviques, superar o capitalismo parece mais necessário que nunca. E o fazê-lo em bases radicalmente democráticas é, ainda, um desafio à procura de resposta
Por Eduardo Mancuso | Imagem: Ilya Kabakov
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MAIS
Esta é a terceira e última parte de A Revolução Russa de Outubro de 1917, livro recém-lançado por Eduardo Mancuso. Historiador, colaborador editorial de Outras Palavras, ele soma, à militância de mais de trinta anos pelo socialismo democrático, a capacidade de refletir sobre esta luta, seus avanços e seus erros. Breve e pedagógico, o texto não cede, porém, às simplificações e dogmatismos. É uma provocação útil, tanto aos que querem começar a estudar a experiência soviética quanto a quem deseja rever as polêmicas que a marcaram



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Restabelecer a democracia soviética
Como era possível opor-se eficazmente ao processo de burocratização na Rússia de 1920, um país isolado internacionalmente e destruído pela Guerra Mundial e pela guerra civil? Um país golpeado pela fome, com seu sistema de transporte desorganizado e uma classe operária reduzida a menos da metade do que era em 1917? Em tais condições materiais e sociais, reconhece Ernest Mandel, o imediato restabelecimento da democracia soviética, e inclusive a gestão operária, eram impraticáveis. Após a sobrevivência da revolução estar assegurada, graças a vitória do Exército Vermelho, a direção do partido e do Estado deviam priorizar o relançamento da produção, em especial da produção agrícola, e o restabelecimento do emprego. E assim foi feito, mesmo com o atraso provocado pelo “comunismo de guerra”.
Desde o início da Nova Política Econômica (NEP), em 1921-1922, com a retomada lenta da economia, o debilitamento numérico da classe operária havia sido interrompido e começava a recuperar-se nas grandes cidades. Para Mandel, nesse momento, a progressiva ampliação da democracia soviética poderia acelerar o restabelecimento social e político da classe operária, viabilizando um processo de repolitização da base social da revolução. Porém, ao reduzir de maneira autoritária e centralista aquilo que ainda subsistia em termos de democracia, os dirigentes soviéticos agravaram a despolitização do proletariado e do próprio partido. Essa situação, combinada com o isolamento provocado pela derrota da revolução europeia, foi determinante para a burocratização da Revolução de Outubro.
A democracia soviética foi definitivamente asfixiada quando proibiu-se os partidos soviéticos após a guerra civil, e não antes, quando a luta de vida ou morte contra os exércitos brancos estava em desenvolvimento. Mandel assinala o caráter paradoxal dessa situação: a democracia soviética foi cerceada depois da vitória definitiva dos bolcheviques, quando já nenhum exército branco ou estrangeiro atuava no território da Rússia dos Sovietes.
Segundo Mandel, as medidas então tomadas basearam-se na ideia de que, justamente em função da vitória na guerra civil, a mobilização revolucionária do proletariado decresceria (ela havia sido fundamental para derrotar a contrarrevolução). E de forma um tanto ilógica, para os bolcheviques esta desmobilização ameaçava o poder soviético, ao contrário de representar um desafio e uma nova condição favorável para a politização da sociedade. Naquele momento, restabelecer a democracia soviética não apenas era possível, mas era o caminho correto a seguir.
Rosa Luxemburgo, em seu texto de 1918 sobre a revolução na Rússia, em que reconhecia e aplaudia a ousadia histórica dos bolcheviques, lembrava que a revolução socialista e o início da construção da sociedade sem classes constituíam uma experiência totalmente nova. Não havia nenhum manual de regras previamente estabelecidas para ser consultado. A revolução russa foi um imenso laboratório histórico, ao mesmo tempo emancipador e dramático. A única maneira de avançar era experimentando e tateando. Nesse sentido, somente a prática pode demonstrar se uma decisão política ou uma simples medida concreta é correta ou equivocada. Todo enfoque dogmático, que parta de esquemas preestabelecidos, resulta contraproducente (como resulta contraproducente, aliás, toda orientação puramente pragmática). Ambos os enfoques, dogmáticos ou pragmáticos, são reducionistas, e costumam elidir as grandes decisões políticas estratégicas.
A revolução necessita de maneira vital da democracia pluralista, do pluripartidarismo, de uma vida política ativa, do direito de crítica e de intervenção pública das massas. Porque se a revolução e o início da construção de uma sociedade sem classes são um imenso laboratório, os erros são inevitáveis: resulta vital dispor de mecanismos que permitam não evitar os erros – o que é impossível – mas sim corrigi-los o mais rápido possível e depois tentar evitar a sua repetição. Mandel lembra que o próprio Lenin ressaltava que a forma como um partido se comporta frente a seus próprios erros condiciona seu futuro. E é nesse contexto histórico que a democracia soviética adquire todo o seu valor. Os exemplos da Comuna de Paris e da Revolução de Outubro demonstram as possibilidades históricas da democracia radical dos “de baixo”, do “governo do povo, pelo povo e para o povo”, de seu potencial político e de sua carga utópica. Esses exemplos históricos revolucionários continuam presentes e atuais.
A legitimidade da Revolução de Outubro
Após a vitória bolchevique, tanto a direita liberal e a reação imperialista e conservadora como a social-democracia internacional atacaram violentamente a Revolução de Outubro. Alguns, afirmando que se tratava de um golpe de Estado; outros, de que só havia semeado destruição, e até mesmo que era expressão da “barbárie asiática”. Nada mais distante da realidade. Considerando a perspectiva marxista crítica de Ernest Mandel, a revolução política e social dirigida pelos bolcheviques, baseada na democracia dos conselhos de operários, soldados e camponeses, contou com o apoio manifesto da maior parte do proletariado e do povo russo e expressou, melhor do que qualquer outra corrente política naquele momento histórico dramático, o desejo das massas da Rússia e da Europa de encerrar a carnificina imperialista (capitalista e ocidental) da Primeira Guerra Mundial.
Além de ser o único partido a defender a paz imediata e sem anexações, o bolchevismo de Lenin e Trotsky encarnou, na teoria e na prática, o internacionalismo dos povos contra a opressão nacional, a revolução agrária que distribuiu terra para os camponeses, a democratização da educação e da cultura para as massas russas. Aliás, sobre o tema da cultura, o historiador Beryl Willians destaca que, no final de 1918, já havia três vezes mais museus que antes da revolução.
 A combinação de experimentações em matéria de arte e de intensos debates intelectuais sobre questões culturais deu origem a um período de vigor artístico e sonhos utópicos nos anos de revolução e guerra civil.[1]
As inúmeras e relevantes vanguardas estéticas surgidas em meio ao redemoinho da revolução de Outubro atestam isso, e têm seu lugar assegurado na história da arte mundial. Com Anatole Lunacharsky como Comissário do Povo para a Educação e Cultura, durante os primeiros anos da revolução russa, o desenvolvimento e a qualidade do teatro e do cinema, da pintura e da escultura de vanguarda, do urbanismo e da arquitetura, da psicologia, da análise de conjuntura econômica e da historiografia, bem como da literatura e da poesia, realmente impressionaram  o mundo.
A revolução empreendeu um imenso esforço de alfabetização e expansão da educação. O orçamento da educação, aumentado pela revolução de fevereiro, foi triplicado pelos bolcheviques em 1918 e novamente triplicado em 1919. O número de escolas primárias cresceu de 38.387, em 1917, a 52.274 em 1918, e para 62.238 em 1919. A educação pré-escolar, praticamente inexistente sob o czarismo, alcançou a 200 mil crianças em 1921.[2]
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Ao proibir a venda de álcool, a revolução praticamente eliminou a embriaguez nas grandes cidades, como atestam diversos testemunhos. Quando se sabe o grau em que o alcoolismo golpeava a Rússia antes de Outubro (e continua golpeando ainda hoje), pode-se avaliar a importância para a saúde pública dessa medida (revertida mais tarde por Stalin, com a implantação do monopólio estatal da venda de álcool).

Em 1918-1919 as obras de clássicos da literatura como Puschkin, Gogol, Tolstoi, Turgueniev, Dostoievski, Zola, Anatole France, Walter Scott, Romain Rolland e de teóricos social-democratas como Jean Jaurés, inclusive de adversários da Revolução de Outubro (como Plekhanov e Kautsky), alcançavam tiragens que variavam de 25 mil a 100 mil exemplares (isso em plena guerra civil!).[3]
Ao mesmo tempo, a revolução iniciou um trabalho de resgate e de pesquisa dos clássicos do pensamento marxista, fundando o Instituto Marx-Engels, sob a direção do historiador comunista Riazanov. Também impulsionou-se uma formidável participação das massas na vida cultural. Mandel cita o célebre filme O Encouraçado Potenkin, de Serguei Eisenstein, que envolveu milhares de populares em sua rodagem.
Para exemplificar o sentido histórico e as esperanças utópicas despertadas pela Revolução de Outubro, Mandel recorre ao testemunho de um autor ferozmente antibolchevique, Leonard Shapiro, que recorda seus momentos em finais de 1920, quando era um jovem habitante de Petrogrado:
 A vida era extraordinariamente dura. O nível de alimentação se aproximava da fome […]. E no entanto, minhas recordações, indubitavelmente influenciadas pelos adultos que me rodeavam, são os de entusiasmo e de exaltação. [Essa] vida nova, de esperança, anunciava um grande futuro. Ape sar das privações e da brutalidade do regime, o sentimento de euforia suscitado pela queda da monarquia, em março de 1917, ainda não estava morto.[4]
Após a Revolução dos Sovietes, a fusão do partido bolchevique com o Estado representou o retorno a uma concepção tradicional do poder político, na contramão dos interesses dos trabalhadores, do movimento socialista e do próprio pensamento marxista clássico. Como disse o filósofo Alain Badiou, na Revolução Russa de Outubro de 1917, a organização revolucionária acabou se fundindo ao Estado e, assim, a ideia comunista de emancipação foi engolida e devorada pelo poder político.
Nos dias atuais, de crise sistêmica da civilização capitalista, a experiência histórica do “socialismo real” certamente está encerrada, mas a atualidade da utopia democrática e internacionalista, representada pela Revolução de Outubro, permanece viva no horizonte da humanidade. E a disjuntiva histórica que está colocada pode ser resumida nas palavras de Ernest Mandel:
 [. . .] a barbárie, como resultado possível do afundamento do sistema, é uma perspectiva muito mais concreta e precisa hoje do que foi nos anos 1920 e 1930. Inclusive os horrores – de Auschwitz e de Hiroshima – parecerão mínimos em comparação com os horrores que a humanidade deverá afrontar durante a contínua decrepitude do sistema. Nessas circunstâncias, a luta por uma saída socialista adquire o significado de uma luta pela sobrevivência da civilização humana e do gênero humano.[5]

Glossário
Anarquistas: Corrente revolucionária com importante tradição na Rússia, que remonta ao século 19 e teve em Bakunin e no príncipe Kropotkin seus maiores expoentes, e que vai colaborar com os bolcheviques no período inicial da Revolução de Outubro, mas depois volta-se para a oposição ao novo poder. O líder camponês Makhno foi o dirigente anarquista mais conhecido durante a revolução.
Assembleia Constituinte: Assembleia de representantes eleitos que têm a tarefa de discutir e votar a Constituição do país. A necessidade de uma Constituinte impõe-se na Rússia a partir da revolução de fevereiro de 1917. Porém, quando finalmente se reúne, após muitos adiamentos, sua legitimidade é duplamente questionada. Como seus membros são eleitos antes da Revolução de Outubro, mas apenas se reúnem depois, sua constituição não refletia a experiência da revolução e a profunda alteração na correlação de forças ocorrida — política e social. Assim, a Assembleia Constituinte acaba por se confrontar com a nova legitimidade do Congresso dos Sovietes, e será dissolvida pelo governo revolucionário em janeiro de 1918.
Auschwitz: Nome do local, na Polônia, onde os nazistas constroem um dos principais campos de concentração, em funcionamento entre 1940-1945, e onde morrem quatro milhões de prisioneiros, sobretudo judeus e poloneses.
Austro-marxismo: Corrente marxista austríaca, particularmente forte antes da Primeira Guerra Mundial. Max Adler, Rudolf Hilferding, Karl Renner e Otto Bauer foram seus principais expoentes, políticos e teóricos. Em 1918-1919 defendem a “teoria da revolução lenta” e se opõem a conquista do poder pelo movimento socialista.
Bakunin, Mikail (1814-1876): Revolucionário anarquista russo, contemporâneo de Marx, foi o tradutor da primeira edição russa do Manifesto Comunista e membro da Primeira Internacional.
“Brancos”: Termo utilizado para designar os contrarrevolucionários, em oposição aos “vermelhos”.
Brest-Litovsk: Cidade da Bielorussia (antigamente polonesa) onde, entre o final de 1917 e o início de 1918, desenrolaram-se as negociações entre o poder soviético e o bloco alemão para uma paz em separado.
Bolchevique: Termo originado da palavra russa “maioria”. Denominação da corrente dirigida por Lenin a partir do II Congresso (1903) do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), filiado à Segunda Internacional. Em 1912 constitui-se em partido independente, em 1917 dirige a Revolução de Outubro e, em 1918, adota o nome de Partido Comunista.
Bukharin, Nikolai (1888-1938): Membro do Comitê Central bolchevique em 1917, era próximo de Lenin e um dos mais brilhantes teóricos do partido. Em 1918 opõe-se ao tratado de Brest-Litovsk, animando o grupo dos “comunistas de esquerda”. Defensor da NEP e dirigente da Internacional Comunista durante os anos 1920, enfrenta Stalin no período da “coletivização forçada” no campo, é afastado da direção e depois liquidado sem piedade nos Processos de Moscou.
Cadete (KD): Corrente liberal, “constitucionalista-democrata”, em fevereiro de 1917 constitui-se como o principal partido burguês e forma o Governo Provisório, depois da queda do czar.
Comunismo de guerra: Nome da política econômica de comando adotada durante a guerra civil (1918-1921), caracterizada pelo espírito igualitário, a estatização radical e por medidas excepcionais, como as requisições forçadas de alimentos entre os camponeses, para alimentar as cidades e o Exército Vermelho.
Congresso de Baku dos Povos do Oriente: O primeiro Congresso dos Povos do Oriente realizou-se em Baku, Azerbaijão, em setembro de 1920, e reuniu dois mil delegados (entre eles 55 mulheres) dos quais dois terços eram comunistas de quarenta nacionalidades, principalmente turcos, persas, russos e povos do Cáucaso e da Ásia Central (armênios, georgianos, uzbeques, curdos, tadjiques, chechenos, inguches etc).
Cossacos: Designa as comunidades guerreiras que nos séculos 15 e 16 resistiram aos conquistadores (tártaros, turcos) estabelecidos ao longo dos rios Don e Dnieper. Derrotados pelos russos, os sobreviventes formam corpos de guarda enviados às fronteiras do império, como guarda pessoal do czar e forças de cavalaria para repressão interna. Alimentam parte dos exércitos brancos na guerra civil, mas também houve setores que se aliaram aos bolcheviques e aos anarquistas (Ucrânia).
Czar: Palavra russa que designa soberanos eslavos, entre outros o imperador da Rússia.
Dan, Teodoro (1871-1947): Dirigente da social-democracia russa, porta-voz da corrente menchevique a partir de 1903. Pacifista durante a guerra. Em 1917 une-se à ala direita do menchevismo e opõe-se à Revolução de Outubro. Exilado em 1922, foi autor, junto com Martov, da História da socialdemocracia russa.
Dzerzhinsky, Felix (1877-1926): Militante da social-democracia russa e polonesa, passa onze anos nas prisões czaristas. Libertado após a revolução de fevereiro, integra o Comitê Central do partido bolchevique desde agosto de 1917 até a sua morte. Fundador da Tcheka, foi também Presidente do Conselho de Economia Nacional.
Governo Provisório: Denominação dos vários governos burgueses que sucederam a revolução de fevereiro de 1917. Após a Revolução de Outubro, adotou-se o nome de “Governo provisório de operários e camponeses”.
Guerra civil: Guerra generalizada provocada em 1918 pelas forças contrarrevolucionárias nacionais e internacionais para derrubar o poder soviético, provocou centenas de milhares de mortes e só foi encerrada em 1920-1921, com a vitória bolchevique, graças à resistência popular e ao Exército Vermelho.
Guerra russo-polonesa: Guerra deflagrada pela invasão polonesa ao território russo entre maio-setembro de 1920, leva ao contra-ataque do Exército Vermelho, que chega até as portas de Varsóvia.
Império Russo: Império constituído do século 10 até o início do século 20, estendia-se da Europa Oriental até as fronteiras da Turquia, Mongólia e China, e do mar Báltico à Sibéria. O Império russo dominava etnias e nacionalidades diversas, incluindo populações muçulmanas ao sul e sociedades industrializadas e católicas como a Polônia. Depois da Revolução de 1917, o antigo império transforma-se na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Internacional, I: Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876). Marx e Engels participaram ativamente de sua construção, exercendo papel importante em sua direção política e na elaboração programática da primeira organização internacionalista da classe trabalhadora.
Internacional, II: Internacional Socialista, fundada em 1889. Sofre uma profunda divisão em 1914, quando a maioria dos partidos social-democratas capitula diante da guerra imperialista. Será reconstituída na década de 1920.
Internacional, III: Internacional Comunista, fundada em 1919. Lenin e Trotsky dirigem seus primeiros quatro congressos, até 1922. No final dos anos 1920, e durante a década de 1930, transforma-se em instrumento político e diplomático da burocracia stalinista da União Soviética.
Internacional, IV: Fundada em 1938 por Trotsky, resgata as bases teóricas e programáticas dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista e da Oposição de Esquerda antiestalinista.
Jaurés, Jean (1859-1914): Dirigente da II Internacional, deputado e principal representante do socialismo humanista francês, foi assassinado por suas posições pacifistas contra a Primeira Guerra Mundial.
Kamenev, Lev (1883-1936): Um dos principais dirigentes bolcheviques, muito próximo a Lenin. Detido em 1914, é libertado pela revolução de fevereiro de 1917. Opõe-se à orientação de Lenin em abril de 1917, e depois contra a decisão da insurreição em outubro. Nos anos 1920 segue sendo um dos principais dirigentes do Partido Comunista da União Soviética e da III Internacional. Primeiramente, constituindo a chamada Troika, o triunvirato com Stalin e Zinoviev. Em 1926, com Zinoviev e Trotsky, forma a Oposição Unificada contra Stalin. Foi liquidado durante os processos de Moscou.
Kautsky, Karl (1854-1938): Colaborador e executor testamentário de Engels. Principal teórico da social-democracia alemã e da II Internacional até a Primeira Guerra Mundial (situando-se então na ala de centro-esquerda), influenciou teoricamente a Lenin até a ruptura de 1914, opondo-se, depois, à revolução russa.
Kerensky, Alexandre (1881-1970): Advogado e principal dirigente da corrente trabalhista, em 1917 assume no Governo Provisório como Ministro da Justiça, depois Ministro da Guerra e, a partir de julho, como Primeiro-Ministro. Reprime o movimento revolucionário e, após Outubro emigra para a Inglaterra, depois França e Estados Unidos.
Kolontai, Alexandra (1872-1952): Revolucionária e feminista marxista, integrante do POSDR em 1899, adere aos bolcheviques, primeiro, mas depois participa da corrente menchevique até 1914. Internacionalista durante a guerra, volta ao bolchevismo em 1915, e entra no Comitê Central do partido em agosto de 1917. Comissária de Saúde do governo dos Sovietes e porta-voz da corrente interna Oposição Operária entre 1920-1922. Sob o regime stalinista afasta-se politicamente e assume apenas funções diplomáticas.
Kornilov, (1870-1918): General do alto oficialato do exército czarista. Nomeado Comandante em Chefe em julho de 1917, tenta organizar um Golpe de Estado, mas é derrotado. Forma um “Exército Voluntário” no início da guerra civil.
Kun, Bela (1885-1937): Revolucionário húngaro, torna-se bolchevique quando é prisioneiro de guerra na Rússia. Chefe da República Húngara dos Conselhos em 1919, emigrado após a derrota da revolução, torna-se dirigente da Internacional Comunista e apoia Stalin, mas acaba liquidado pelo regime stalinista.
Lenin, Vladimir Ilitch Ulianov (1870-1924): Dirigente da corrente bolchevique a partir de 1903 e um dos principais integrantes da esquerda da II Internacional. Principal líder da revolução russa de outubro de 1917, do partido comunista e da III Internacional, até sua morte.
Leninismo: Terminologia adotada após a morte de Lenin. Designa o corpo teórico, a doutrina e a prática política personificada pelo maior revolucionário do século 20.
Lunacharsky, Anatole (1875-1933): Crítico literário e de arte, bolchevique desde 1903, se afasta de Lenin em 1908 e se aproxima do menchevismo. Autor de Religião e Socialismo. Internacionalista durante a guerra, membro da organização Interdistrital de Trotsky, em 1917 retorna ao partido bolchevique antes da revolução. Comissário do Povo para a Educação e Cultura de 1917 a 1929.
Luxemburgo, Rosa (1870-1919): Revolucionária e teórica marxista polonesa, assume um papel importante na luta contra o reformismo e o revisionismo na social-democracia alemã. Conhecida por seus estudos sobre o imperialismo e as críticas que formula ao leninismo (sobre a questão do partido, assim como, no caso da revolução russa, sobre a questão agrária e a democracia). Internacionalista, durante a guerra é encarcerada, sendo liberada em 1918. Rompe politicamente com a social-democracia, forma o partido comunista (espartaquista), é assassinada na primeira fase da revolução alemã.
Makhno, Nestor (1889-1934): Anarquista, depois da Revolução de Outubro organiza um exército de camponeses e cossacos no sul da Ucrânia. Alia-se ao Exército Vermelho contra Denikin (1919) e Wrangel (1920). Esta aliança acaba após a derrota dos exércitos brancos. Refugia-se na Romênia e depois em Paris.
Martov, Julio (1873-1923): Dirigente do POSDR e amigo de Lenin. A partir de 1903, representa a ala esquerda da corrente menchevique. Líder dos “mencheviques internacionalistas” durante a guerra, adota uma posição “centrista” diante da questão da revolução socialista e a tomada do poder em outubro de 1917. Dá apoio crítico ao regime soviético durante a guerra civil, mas em 1920 abandona a Rússia.
Marx, Karl (1818-1883): Elabora, com Engels, as bases do materialismo histórico. Teórico e militante do movimento operário comunista. Fundador da I Internacional. Nos anos de 1880, Marx compreende que a Rússia, mesmo nas condições prevalecentes no final do século 19, poderia iniciar a transição socialista sem passar por uma etapa histórica de desenvolvimento capitalista (sendo que a concretização desta virtual possibilidade dependeria do curso da luta de classes nacional e internacional). Dessa forma, opõe-se às interpretações mecanicistas de sua teoria e às concepções unilineares da história mundial das sociedades humanas.
Menchevique: Minoria, em russo. Corrente social-democrata reformista do POSDR, constituída em 1903, em oposição ao bolchevismo. Durante a guerra mundial divide-se entre uma corrente “menchevique internacionalista” (Martov) e a ala majoritária, favorável à intervenção militar contra a Alemanha (Plekhanov). Em 1917, a corrente menchevique divide-se entre uma ala de colaboração de classe, majoritária (Dan), e uma cisão de esquerda (Martov), mas ambas opõem-se, em graus variados, à Revolução de Outubro.
NEP: Sigla em russo de Nova Política Econômica, iniciada em 1921. Representa uma profunda ruptura com a economia de comando do comunismo de guerra. Libera o mercado e a produção camponesa, favorece o desenvolvimento da pequena indústria privada e abre-se ao investimento de capital estrangeiro.
Oposição Centralismo Democrático: Grupo de oposição no IX Congresso do partido comunista (bolchevique), denuncia a centralização excessiva e o abuso nos métodos autoritários.
Oposição de Esquerda: Oposição antiestalinista (antiburocrática), também chamada “bolchevique-leninista”, formada por Trotsky em 1923. Em 1929, após a expulsão de Trotsky da União Soviética, torna-se Oposição de Esquerda Internacional e, em 1938, funda a IV Internacional.
Oposição dos Comunistas de Esquerda: Grupo formado em torno a Bukharin no início de 1918, contrário a assinatura do Tratado de Brest-Litovsk. Propõe um programa “sem concessões”, de continuação da “guerra de defesa revolucionária”, a extensão das nacionalizações e a centralização do controle no domínio econômico, além do reforço do poder das estruturas soviéticas de base.
Oposição Operária: Grupo de oposição no partido formado em 1920, com a liderança de Alexandra Kolontai. Defende o controle da produção por parte dos sindicatos, expressa uma visão “obreirista” do partido e reclama o retorno do princípio da eleição para todos os responsáveis e cargos.
Partido Operário Social-Democrata da Rússia (POSDR): Fundado em 1898, reagrupa todas as correntes revolucionárias e reformistas que reivindicam o marxismo, integrando a II Internacional. No congresso de 1903 divide-se em duas frações: bolchevique (Lenin) e menchevique (Martov). A revolução de 1905 as reunifica, mas em 1912 dividem-se formalmente em dois partidos. Em 1917, vários quadros e personalidades independentes, inclusive Trotsky, unem-se ao partido bolchevique, que em 1918 converte-se em PCUS.
Plekhanov, George (1858-1937): Intelectual e filósofo da primeira geração do POSDR, fundador da II Internacional, introduz o marxismo na Rússia. Dirigente menchevique a partir de 1904, adota uma posição ultrapatriótica durante a Primeira Guerra Mundial. Opõe-se à Revolução de Outubro por considerá-la “historicamente prematura”.
Populismo: Principal corrente revolucionária na Rússia do século 19. Engloba movimentos e orientações diversas (incluindo o trabalho de organização rural e urbano, a propaganda e atentados contra altos funcionários e ao próprio czar). O marxismo russo se constituirá polemizando com as orientações políticas do populismo. A corrente populista marca a tradição radical russa, influenciando, no começo do século 20, o Partido Socialista Revolucionário.
Primeira Guerra Mundial (1914-1918): Chamada de “Grande Guerra” até a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Primeiro grande conflito militar interimperialista pela repartição do mundo. Opõem os “Impérios Centrais” (Alemanha e Áustria-Hungria) e seus aliados contra a “Entente” franco-inglesa e seus aliados (entre eles o Império Russo e os Estados Unidos). Termina com a derrota dos Impérios Centrais e milhões de mortos.
Processos de Moscou: Sucessão de processos políticos organizados entre 1936 e 1938 na URSS, em que a fração stalinista lança acusações inverossímeis contra a maioria dos dirigentes leninistas da Revolução de Outubro, apresentando-os como contrarrevolucionários e agentes de potências imperialistas. Através dos processos, Stalin busca eliminar fisicamente e desmoralizar toda a oposição interna no seio do PCUS e do Estado Soviético.
Reich: Palavra alemã que significa império. Utilizada para designar o Estado alemão durante três regimes políticos: Primeiro Reich ou Santo Império Romano-Germânico (962-1806); Segundo Reich (1871-1918), estabelecido por Bismark; Terceiro Reich (1933-1945), hitlerista.
República de Weimar: Regime estabelecido na Alemanha em novembro de 1918, após a abdicação de Guilherme II, com a participação de social-democratas. Depois de reprimir a revolução alemã, o regime de Weimar mostra-se incapaz de superar a crise econômica e social e, com a chegada de Hitler ao poder, em 1933, entra em colapso e a partir daí, inicia-se a ditadura nazista.
República Socialista Federativa dos Sovietes da Rússia: Fundada em janeiro de 1918 pelo Terceiro Congresso Panrusso dos Sovietes.
Revolução alemã: Trata-se das lutas revolucionárias que sucedem-se na Alemanha de 1918 a 1923.
Revolução francesa: Trata-se do longo processo da revolução burguesa ocorrido na França entre 1789-1815, especialmente de seus primeiros anos mais radicais (1789-1794). As principais etapas da revolução francesa são a derrubada do antigo regime e a proclamação da República, em 1792; o governo dos jacobinos de Robespierre, entre 1793-1794; o “thermidor” de 1794; o regime do Diretório, de 1795-1799; e a ditadura de Napoleão Bonaparte, entre 1799-1815.
Revolução de Outubro: Trata-se da revolução russa de outubro de 1917 e de seus primeiros anos.
Revolta de Kronstadt: Trata-se da sublevação, em março de 1921, dos marinheiros da fortaleza militar de Kronstadt, no porto do mar Báltico, contra o poder bolchevique. O fracasso das negociações leva ao esmagamento da rebelião pelo Exército Vermelho, com grandes perdas de vidas para ambos os lados.
Rússia: Centro de um vasto império, entre os séculos 10 e 20, dominado pelo czarismo. Grande potência europeia (e asiática: Sibéria). A partir da revolução francesa, torna-se guardiã da ordem no continente europeu, junto com a Alemanha imperial. Cenário da revolução de 1917, torna-se o centro do regime burocrático da URSS, até sua dissolução, em 1991.
Riazanov, David (1870-1938): Historiador marxista e militante socialista russo, nega-se a optar por alguma das grandes frações do POSDR. Internacionalista durante a guerra, membro da organização de Trotsky, a Interdistrital, une-se aos bolcheviques em 1917. Partidário da colaboração com os mencheviques depois de outubro. Fundador e diretor do Instituto Marx-Engels até 1930, desaparece durante os processos stalinistas.
Serge, Victor (1890-1947): Revolucionário e escritor belga, filho de um intelectual russo exilado, passou pela militância anarquista, comunista até a dissidência com a Oposição de Esquerda, nos anos 1920, e o exílio. Autor de Memórias de um revolucionário, O ano I da revolução russa e Vida e morte de Trotsky.
Social-democrata: O termo designava, antes da Primeira Guerra Mundial, a corrente marxista em seu conjunto e diversidade, incluindo socialistas reformistas e revolucionários.
Socialista-revolucionário: Partido membro da II Internacional, constitui o prolongamento da tradição do populismo russo do século 19. Hegemônico no movimento camponês, existia também nos centros urbanos. Participa da revolução de fevereiro de 1917 e da política de colaboração de classe com o Governo Provisório. Durante o verão divide-se em uma ala esquerda, revolucionária, enquanto a ala direita participa da oposição contra a Revolução de Outubro. Os SR de esquerda participam do governo dos Sovietes até a assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, ao qual denunciam como uma traição. Organizam, em julho de 1918, um levante contra os bolcheviques.
Soviete: Termo russo que significa “conselhos”, refere-se às estruturas de auto-organização surgidas na revolução de 1905 e depois, em 1917. Os conselhos de operários, camponeses e soldados, formados a partir da eleição de representantes com mandatos revogáveis pela base, tomaram toda a Rússia, das fábricas e cidades, até as áreas rurais e as forças armadas. Perdem vitalidade e dinâmica política durante a guerra civil. A burocracia stalinista acaba despojando os Sovietes de toda sua representatividade democrática e poder real.
SPD: Partido Social-democrata alemão, fundado em 1891, herdeiro do partido operário surgido da fusão entre as correntes lassalianas e marxistas. Até a Primeira Guerra Mundial era o principal partido da II Internacional, mas após apoiar a guerra imperialista e participar dos governos que reprimiram a revolução alemã, converte-se em partido reformista. Participa com destaque da rearticulação da Internacional Social-democrata após a guerra.
Stalin, Josef (1879-1953): Georgiano, adere ao POSDR em 1898, torna-se bolchevique em 1903. Pertence à ala leninista do partido, mas adota uma política conciliadora frente ao Governo Provisório. Adere às posições de Lenin, expressas nas teses de abril, integra o Comitê Central bolchevique em 1917. Comissário das Nacionalidades de 1919 a 1923, Secretário do Comitê Central a partir de 1922, choca-se violentamente com Lenin na questão das nacionalidades e do regime interno do partido. A partir de 1924, torna-se o principal dirigente do PCUS e do Estado Soviético. Preside a coletivização forçada no final dos anos 1920, os expurgos e os processos repressivos dos anos 1930. Personifica o processo de deformação burocrática do partido e do regime e, finalmente, a sua degeneração totalitária.
Tcheka: Comissão Extraordinária, polícia política do regime soviético.
Termidor: Termo originalmente usado para denominar a contrarrevolução política ocorrida durante a revolução francesa, a partir de julho de 1794 (“thermidor” no calendário da época), com a derrubada de Robespierre e o desmantelamento das formas de poder popular e democráticas nascidas durante os levantes contra o antigo regime. Por analogia, o “thermidor soviético” designa a contrarrevolução stalinista que vai liquidar a democracia socialista e instaura a ditadura burocrática, sem contudo restaurar o capitalismo na URSS.
Trotsky, Leon (1879-1940): Participa do congresso do POSDR de 1903 e polemiza contra as teses de Lenin sobre o partido, adotando postura independente em relação às duas grandes frações internas. Um dos principais representantes da revolução de 1905 (presidindo o Soviete de São Petersburgo). Entre 1910-1912 busca conciliar as frações menchevique e bolchevique. Internacionalista durante a guerra, rompe definitivamente com os mencheviques. Em 1917, unifica a sua organização Interdistrital com os bolcheviques, integrando o Comitê Central, e coordenando o Comitê Militar Revolucionário do Soviete de Petrogrado, responsável pela tomada do poder em outubro. Chefe da delegação soviética nas negociações de Brest-Litovsk, organizou e chefiou o Exército Vermelho durante a guerra civil. Opõe-se a Stalin e ao processo de burocratização do regime depois da morte de Lenin. Expulso do partido e da Internacional Comunista, em 1927, e da União Soviética, em 1929, organiza a Oposição de Esquerda no exílio e funda a IV Internacional. Assassinado pelo stalinismo no México.
União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS): Fundada em 1923, formalmente dissolvida em 1991 e substituída pela Comunidade de Estados Independentes.
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[1] Willians, B.. op. cit, p. 80.
[2] Morizet, A. in Mandel, E. op. cit., p. 43.
[3] Morizet, A. in Mandel, E. op. cit., p. 44.
[4] Shapiro, L., op. cit., p. 219.

[5] Mandel, E. Marx, K., O Capital, livro III. Penguin, 1981, p. 89.



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  Revolução Chinesa 1949

  Referências e Textos


  Revolução Cubana 1959

  Referências e Textos
  

  Revolução Iraniana 1979
  
  Referências e Textos

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