sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

DO TERREMOTO AO FURACÃO - HAITI, O IMPASSE HUMANITÁRIO

Responsável por mais de quinhentos mortos em uma semana, o furacão Matthew causou mais estragos no Haiti do que nas outras regiões pelas quais passou. O país mais pobre do Caribe estaria condenado a ter infinitas recaídas apesar da ajuda recebida?
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Onze horas. As operárias da Factory 4 e seus raros colegas homens deixam o trabalho e, lentamente, se esparramam sob o sol forte. A maior parte ainda veste o avental e o boné obrigatórios. Aquelas e aqueles que não se dirigem precipitadamente ao refeitório disputam o pouco de sombra proporcionado por algumas árvores para comer sua refeição. Cerca de quarenta haitianas autorizadas a penetrar no parque se levantaram ainda mais cedo para preparar os pratos, que vendem a 50 gurdes (R$ 2,40): o preço é o mesmo para todos. Como seus colegas, Johnny só irá acertar com ela daqui a alguns dias, e de uma só vez, quando receber seu pagamento quinzenal.
Ele trabalha ali há apenas quinze dias. Após ter passado dezenove anos na República Dominicana, voltou para o Haiti “por causa de problemas lá…”. De fato, em setembro de 2013, o Tribunal Constitucional da República Dominicana privou da cidadania entre 100 mil e 200 mil moradores de ascendência haitiana, dando ensejo a expulsões maciças e instaurando um clima de tensão racista. Todos os dias, exceto aos domingos, Johnny percorre o mesmo trajeto a partir de Cabo Haitiano. Acordar antes das 5 horas e retornar depois das 18 horas para ganhar o salário mínimo: 240 gurdes (R$ 11,30) por dia. Difícil? Tudo é relativo aos seus olhos: a taxa de desemprego beira os 60%. Mais de 9 mil operários (dos quais cerca de dois terços compostos por mulheres) se esfalfam no coração do Parque Industrial de Caracol (PIC), que em breve vai festejar seu quarto ano de existência.
Em 12 de janeiro de 2010, um tremor de terra de magnitude 7 atingiu o Haiti, fazendo mais de 200 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados.1 O impulso mundial de solidariedade ligado ao embalo da mídia traduziu-se por uma onda humanitária, que transformou o Haiti em “república das ONGs”.2 Mas o essencial dos US$ 10 bilhões prometidos nunca chegou: a cifra misturava empréstimos, somas já incluídas em orçamentos, anulações de dívidas e promessas de doações (nem sempre cumpridas). A ajuda se metamorfoseou em barganha. Seis anos depois, os haitianos não vivem melhor que antes. E o país continua igualmente vulnerável aos acasos climáticos.

Transformar a catástrofe em “oportunidade”
No início de outubro, o furacão Matthew castigou intensamente o país, como seus predecessores Jeanne, em 2004, Gustav, Hanna e Ike, em 2008, e Sandy, em 2012. Segundo um relatório das Nações Unidas publicado em 13 de outubro, 230 mil pessoas teriam sido mortas em decorrência de catástrofes naturais no Haiti desde 1995. E dessa vez novamente há a preocupação com o aumento da epidemia de cólera, com a insegurança alimentar, com a falta de acesso à água potável e aos cuidados de saúde. As imagens da catástrofe estão nas primeiras páginas dos jornais, a ajuda internacional chega e as equipes de ajuda humanitária dizem ter tirado lições do fiasco de 2010. Mas quais lições?
Inaugurado com grande pompa em 22 de outubro de 2012, na presença do casal Clinton,3 do presidente haitiano à época e de seu predecessor – Michel Martelly e René Préval –, o PIC encarna a convergência da ajuda humanitária e do projeto neoliberal, sintetizada por seus dois slogans: “Reconstruir para melhor” e “O Haiti aberto aos negócios”. Aqui, um locatário privilegiado: a S&H Global, filial da multinacional coreana Sae-A, líder na fabricação de roupas para grandes marcas, como Walmart, Target, Gap… Tendo instalado uma fábrica de montagem no PIC, ela desfruta um acesso ao mercado norte-americano graças à Lei Hope/Help (“esperança/ajuda”), que concede status privilegiado aos produtos têxteis fabricados no Haiti.
Construído sob a supervisão do Estado haitiano em tempo recorde (dez meses) e financiado em mais de US$ 300 milhões pelo governo norte-americano, assim como pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o PIC pretende contribuir para a descentralização do país, criar dezenas de milhares de empregos e transformar a catástrofe de 2010 em “oportunidade”. Mas o projeto já existia antes do sismo: o PIC forma a ponta mais visível e mais avançada de uma estratégia global, a do “Corredor Econômico Norte-Nordeste”. Esse plano de organização do território se estende de Cabo Haitiano, a oeste, até a fronteira dominicana. Seu objetivo: garantir a coordenação dos projetos turísticos e mineradores das zonas francas, entre elas o PIC, que apresenta todas as características delas, a começar pelas vantagens fiscais, jurídicas e comerciais.
É preciso anunciar o assunto da visita ao guarda armado que vigia a entrada do vilarejo, apelidado de “A Diferença”: “Viemos ver a Sherley, a do P48”. Pintadas em cores pastel, rosa, azul e verde, distribuídas segundo uma grade estreita de ruas, as pequenas casas dos empregados desenham aqui um universo asséptico, confinado, que não deixa de lembrar a atmosfera de ansiedade da série de televisão britânica The Prisoner. A ideia da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (Usaid), mestre de obras da construção, era fornecer alojamentos a famílias vítimas do terremoto de 2010, ao mesmo tempo que proporcionava uma mão de obra próxima e disponível. Em suma, matavam-se dois coelhos com uma cajadada. Mas essas cerca de novecentas casas acumularam atrasos, custos adicionais e defeitos técnicos. Se por um lado o loteamento dispõe de uma escola, financiada pela S&H Global, por outro não há mercado, área de jogos, centro de saúde…
O PIC abraça a lógica dos planos de desenvolvimento que vêm sendo impostos ao Haiti há quarenta anos: favorecer as “alavancas de crescimento”, como o turismo, a exploração mineral ou a indústria de terceirização, abrindo sempre mais zonas francas. Uma estratégia “parcialmente” ganhadora, admite Gilles Damais, que trabalha para o BID no país. Liszt Quitel, diretor executivo do PIC, emite uma opinião similar, destacando os 9 mil empregos criados e a eletricidade fornecida a baixo preço graças à central elétrica do PIC. “O parque vai gerar empregos indiretos, aumentar o poder de compra, permitir a abertura de pequenos comércios que não poderiam ter existido antes. A evolução natural é que, dentro de dez a vinte anos, a sociedade evolua para os serviços, quando as pessoas serão mais instruídas…”
Nenhum de nossos dois interlocutores idealiza o modelo da terceirização. “Os parques industriais estão mais para enclaves do que para qualquer outra coisa”, reconhece por exemplo Damais, antes de acrescentar que a etapa lhe parece “indispensável”: “A ideia é passar de uma indústria de base, na qual só se favorece a mão de obra barata, para uma indústria de montagem, com mais valor agregado, mais know-how incorporado, antes de avançar em seguida para uma indústria de serviços”. No entanto, um simples olhar em volta leva a duvidar que esse círculo virtuoso seja plausível.
“Os coreanos são os patrões aqui”
Com seus 8 mil funcionários, a S&H Global representa o segundo empregador do setor têxtil no país. A multinacional sul-coreana comprometeu-se a criar num certo prazo 20 mil empregos, e o governo Martelly anunciou nada menos de 65 mil no total para o PIC. Mas os estudos sobre as zonas francas tendem a superavaliar o número de empregos criados e quase nunca medem a precariedade com que eles produzem. Sem contar que as cifras avançadas para o PIC repousam sobre uma simples projeção calculada com base na… superfície disponível no parque e no número de trabalhadores que ela permitiria manter ali. Além disso, o salário mínimo – que, na realidade, constitui aqui uma espécie de salário máximo… – é tão baixo que possibilita apenas sobreviver. Com a inflação (em torno de 15%) e a desvalorização da gurde em relação ao dólar (–40% entre abril de 2015 e setembro de 2016), o poder de compra rapidamente se esvai nesse país que depende das importações (60% da alimentação consumida).
“Mas você, como branco, o que você faria? Você vai nos dizer?”, pergunta Rose-Myrlande. Habituados a ver desfilar funcionários internacionais, consultores e especialistas de todo tipo – cujos diplomas e a remuneração estão no mais das vezes na medida de sua ignorância e de sua incompetência –, os haitianos aprenderam a estar vigilantes. Em sua maior parte jovens e combativos, os membros do Batay Ouvriye, um dos dois sindicatos presentes no PIC, que diz ter 3 mil membros, mantêm a esperança de passar apenas um pequeno período antes de retomar os estudos ou encontrar um emprego “de verdade”. Nesse dia, eles retornam de uma manifestação para exigir um salário mínimo de 500 gurdes (sob pressão, o governo o elevou de 240 para 300 gurdes para o setor têxtil).
Dentro do parque, a hierarquia retrata a divisão internacional do trabalho: no alto, os coreanos; um andar abaixo, quadros administrativos oriundos da América Central e da República Dominicana; e, na parte de baixo da escala, uma mão de obra não qualificada, haitiana, negra. “Os coreanos são muito duros, eles nos colocam sob pressão. Eles são os patrões aqui.” “É ‘Silêncio!’ e ‘Não, senhora!’”, acrescenta Sherley. “Eles não ouvem você. E quando gritam com você, você tem de se calar, não pode responder.”
12h55. Sherley, Rose-Myrlande, Azemar e os outros erguem seus corpos entorpecidos, afastam com esforço o cansaço de seus olhos e de suas mãos, e se dirigem novamente para a Factory 1. As outras oficinas já retomaram o trabalho. Ainda é preciso aguentar três horas. Mais, caso haja um “extra” – uma hora suplementar pelo valor de 45 gurdes, que é difícil recusar. Depois, ônibus lotado até em casa… Antes de recomeçar no dia seguinte, enquanto os haitianos não conseguirem erguer os obstáculos que os impedem de “desbravar a miséria e plantar a nova vida”.4
1    Ler Maurice Lemoine, “Haïti, doublement maudite” [Haiti, duplamente maldito], Le Monde Diplomatique, jan. 2010.
2    Ler Céline Raffali, “Haïti dépecé par ses bienfaiteurs” [Haiti esfacelado por seus benfeitores], Le Monde Diplomatique, maio 2013.
3    Hillary Clinton, na qualidade de secretária de Estado, e seu marido, Bill Clinton, como enviado especial da ONU.
4    Jacques Roumain, Gouverneurs de la rosée [Governadores do orvalho], Zulma, Paris, 2013.
A agricultura esquecida das eleições
Em 10 de março, Bill Clinton fez uma – rara – autocrítica. Ela tinha a ver com a desregulação do mercado de arroz colocada em prática no Haiti sob pressão dos Estados Unidos em 1994, quando ele ocupava a Casa Branca. As tarifas alfandegárias do arroz passaram de 35% para 3%. Mais do que produzir laboriosamente sua própria alimentação em porções de terra cada vez menores, não seria melhor, para os agricultores haitianos, trabalhar nas zonas francas? Graças a seu salário, eles poderiam assim comprar o arroz proveniente do gigante agrícola norte-americano – uma operação em que todos ganhariam, segundo o ex-presidente. Mas a profecia só se realizou parcialmente. Os haitianos compram bastante arroz importado, abundante no mercado. Porém, os empregos se volatizaram, a insegurança alimentar cresceu e o país mergulhou na dependência. Algo que Clinton reconheceu: “Foi um erro”.1 A operação beneficiou sobretudo os fazendeiros norte-americanos.
Apesar dessa epifania, as mesmas políticas continuam sendo aplicadas. A proliferação das zonas francas ilustra o desprezo com que é tratada a agricultura. Trata-se menos de criar empregos do que de converter uma massa rural excedente em uma mão de obra barata e disciplinada. Daí o paradoxo da situação de pobreza, estresse e crises alimentares das populações em torno dessas zonas francas.2
Primeira zona franca agrícola, bem em frente do bairro “A Diferença” (ler artigo nesta página), Agritrans consagra essa lógica. Seu ex-CEO não é outro senão Jovenel Moïse, herdeiro do presidente Michel Martelly, que chegou ao poder nas eleições de 2015 – uma “farsa eleitoral”, na opinião do conjunto das organizações haitianas, mas apoiada até o fim pelos países ocidentais. Sob a pressão das ruas, uma comissão independente confirmou as irregularidades e fraudes. A anulação do pleito devia levar a uma nova eleição, prevista para o início de outubro, mas esta foi adiada em algumas semanas após a passagem do furacão.
Em março último, os Estados Unidos fizeram uma doação de 500 toneladas de amendoim. Esse tipo de gesto nada tem de generoso: ele permite se livrar de maneira barata de uma superprodução favorecida por subvenções públicas,3 ao mesmo tempo que destrói a economia local. Apoiar a agricultura camponesa que faz viver metade da população resultaria em muita agitação e, sobretudo, implicaria ir na contramão dos interesses dominantes. É mais fácil despojar os camponeses e sabotar sua economia para, em seguida, constatar sua não competitividade e seu caráter improdutivo, assegurando uma saída para os superávits norte-americanos, o que ratifica a falência dos camponeses haitianos. (F.T.)


1    “Bill Clinton apologizes for past rice policies” [Bill Clinton se desculpa por políticas passadas em relação ao arroz], Center for Economic and Policy Research, 22 mar. 2010. Disponível em: .
2    “Perspectives sur la sécurité alimentaire” [Perspectivas sobre a segurança alimentar], Commission nationale de la sécurité alimentaire (CNSA), Port-au-Prince, fev.-set. 2016.
3    “Polémique autour de l’envoi de cacahuètes des États-Unis vers Haïti” [Polêmica em torno do envio de amendoim dos Estados Unidos para o Haiti], Radio France Internationale, 25 abr. 2016. Disponível em: www.rfi.fr

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